Talvez eu esteja a exagerar, mas vários dos grupos de discussão de
minorias hoje simpáticos a agendas de partidos de esquerda como o PSOL
já estão dominados por uma lógica liberal-conservadora. A partir do
momento que se diz que um assunto premente e de caráter social como o
machismo ou o racismo tem limitação na participação do debate, já se
coloca uma lógica privatista, do fenômeno social como dilema de alguns e não de todo. Do
machismo falam as mulheres; do racismo o negro; da transfobia a pessoa
trans* e por aí vai. Ignora-se o caráter de alteridade e empatia.
Confunde-se a ordem das coisas. O argumento não passa a valer pelo seu
conteúdo lógico, por sua razoabilidade, mas por quem o expressa e as
características psíquico-físico-biológicas que carrega.
É claro
que a vivência é importante e que tais discussões não podem se furtar a
trazer a voz daqueles que são seus protagonistas, porque isso
acarretaria na reafirmação da lógica da exclusão a que essas minorias
são vítimas. Mas também não é factível dizer que apenas a lógica da
experiência enquanto indivíduo baste, pois assim o fosse todo
trabalhador ao longo de uma jornada de trabalho chegaria à conclusão de
que o capitalismo traz em si ferramentas de espoliação das riquezas
produzidas. Ou em um caso individual, a Condoleezza Rice, mulher e
negra, que cresceu em um período de grande opressão, até perdendo
uma colega de escola vítima de um atentado racista, jamais ostentaria
opiniões conservadoras e não participaria de uma gestão marcada por
profunda negligência a problemas sociais.
Concluo portanto que é
necessário não negar o caráter social dessas questões, o fator de
classe inclusive, e que é preciso sempre estar apto a ouvir, refletir e
não partir de um prejulgamento fundamentalista. É possível que muitas
pessoas que se predisponham a participar desses debates carreguem
consigo as expressões dominantes supressivas existentes na sociedade,
mas são pontos a serem desconstruídos, às vezes lentamente. O fato de eu
em algum momento asseverar qualquer coisa com algum teor machista não
faz de mim um misógino machista digno das piores ofensas. É igualar
alguém que está tentando se livrar dessas heranças culturais seculares
com uma pessoa qualquer que as reafirma como condição básica de pensar o
mundo. É outrossim partir do pressuposto de que seres humanos não
erram, são infalíveis, e que a mudança é impossível -- uma ótica
profundamente reacionária.
Ao mesmo tempo tais pontos requerem de
nós, que não somos objeto central do debate, ainda que dele
participemos, compreensão e empatia. Apreender que o outro lado carrega
ressentimentos, experiências traumáticas e que o lidar com elas não é
sempre fácil. Somos humanos, afinal. Mas continuar a empregar a lógica
da "privatização de problemas sociais" é um enorme retrocesso e que tem
como consequência quase sempre o ressoar de noções moralistas, de
exclusão e, em muitos casos, transformadas em ações concretas calcadas em mero
punitivismo. Práticas históricas dos exploradores e que estão a virar
régua de alguns explorados. O resultado concreto é que o conservadorismo
passa a ser reafirmado por todos os lados. E somos todos nós que
perdemos.
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