24/07/2015

A moça da pedagogia

 Caminhava. Não sabia aonde ir. Então me permitia continuar a caminhar. O que procuro? Não sabia, mas já o tinha encontrado: seus olhos. E estavam ali, tão próximos... E eu poderia fitá-los durante horas. Mas foram apenas segundos. Segundos que desgraçadamente marcariam toda uma vida. Porque a primeira vez.

Era, tinha que ser. Afirmava pra mim mesmo em forma de cobrança e esperança, porque já se passaram muitas primaveras. Tinha chegado a hora. Tinha de chegar.

Voltei ao mesmo lugar, busquei os mesmos olhos e não os encontrei de imediato. Havia de ser uma quimera? Enquanto eu me inquiria, se verdade ou ilusão, lá a moça aparecera, novamente, de súbito, com simpatia e beleza, tudo em profusão. E eram lindos seus olhos. E como.

Dali em diante, com a precisão e a urgência dos enamorados, no mesmo horário e lugar, eu sempre lá estava pronto para vê-la. Eu passei a existir para isso: vê-la, enxergá-la. Mas a dor das dúvidas eram imensas. Como poderia ser ela a primeira sendo que desde logo me parecera ser tão única?

Não demorou muito e eu comecei a ser percebido. Não era mais a relação de um admirador de arte diante de uma obra telúrica inigualável. Era eu, Modigliani, sendo observado pelo quadro que eu ajudei a pintar, colorir e que idealizei em existência. E caramba: existia!

E me doía. E me angustiava. Eram dúvidas, era o sentimento de não saber o que fazer, do caminho do desconhecido, do medo, da sensação de impotência. Era, sobretudo, a compreensão de que eu não estava à altura.

Que miserável é ser pequeno diante da grandiosidade!

Naquele mesmo espaço, com as mesmas questões e dilemas, mas com as certezas e convicções que só quem um dia conheceu a paixão pode asseverar, lá estava eu, vendo o quadro que também me enxergava. Mas havia uma aliança. Havia sim. No anular da mão direita. Que porra isso significava?

Pode ser compromisso, pode ser noivado. Não importava: havia outra pessoa. E quem era, cacete? Não importava mais uma vez: havia alguém. Como diria a famosa cantora em belos versos, meu mundo caiu. E o pior: não tinha ninguém pra levantá-lo senão eu. E no final é sempre isso, mesmo.

Estava porém a deixa pra eu sair e fingir que nada daquilo havia acontecido, alocar toda a imensidão de desejos e dúvidas novamente debaixo do tapete e seguir. E tentar seguir. Mas não. Não dava mais. O caminho já tinha sido tomado. E eu tinha de ir à luta.

E eu tinha de ir à luta. Tinha?

Mas que donzela era aquela, afinal, cuja simples presença fazia meu coração disparar em batidas? Era preciso saber. Era incrivelmente mais rico e diverso do que eu poderia imaginar.

E como proceder? Como vou saber se não perguntar? Mas eu conseguiria? Fiz o que me levou até ela, pois: caminhei. Fui em sua direção enquanto ela também caminhava. Caminhávamos. Entrou na sala da pedagogia. Pronto. Eu já sabia. E não poderia ser diferente, claro: era a moça da pedagogia. E que moça!

Era perfeito. Tudo. Só eu que não. E cada vez que eu tentava me fazer notar e nada acontecia eu tinha ainda mais certeza dessa assertiva. E doía como teria de doer. A vida também é dolorosa e na dor há beleza e poesia.

O tempo passava inexoravelmente. Algo eu teria de fazer ou aquela dádiva viraria apenas inspiração para sentimentos que irremediavelmente se transmutavam em textos pueris, como este que agora escrevo. E não! Não podia ser só isso. Tinha de ser mais. Haveria de ser, claro.

E se não há espaço, é preciso criá-lo. Passei pelo mesmo lugar de sempre e lá estava ela, formosa e exuberante. E uma vez mais me notou. E correspondeu aos meus olhares. Mas já havia feito isso anteriormente e nada mudou.

Chega, disse pra mim mesmo. É preciso dar o passo necessário. É preciso agir. Mas como, se ela sempre foge? Era preciso agir. Era só isso que eu sabia que tinha de fazer.

E agi: a esperei na saída e entrei no mesmo ônibus em que entrou. Estava sentada em um banco sem ninguém ao lado. Era a hora. Ou era apenas loucura? Não dava mais pra voltar. Sentei-me ao seu lado e disse "oi". Fiquei nervoso, angustiado. Não era nossa primeira conversa, mas eu sabia que poderia ser a última. E conforme ela demorou a responder, mais dúvida isso me gerava. E com mais medo eu ficava.

Quando o ônibus deu partida não demorou pra vir o que eu mais temia. Fria como uma geladeira em dia quente de primavera foi e perguntou: peraí, o que você faz aqui? E sem me permitir responder, possivelmente com uma desculpa boba qualquer, soltou a oração cruel e temida, que embora esperada, me caiu como uma bomba: "olha, eu jamais ficaria contigo: você não faz meu tipo".

Você não faz meu tipo.

Você não faz meu tipo.

E eu desci no ponto seguinte.

Não havia mais o que fazer. Estava acabado, encerrado, sepultado. Mas quem? Eu. E doía. Doía como teria de doer.


Por que aquilo me aconteceu? Por que eu não desisti assim que vi a maldita aliança? Por quê? E perguntas sempre apareciam nos intervalos da enorme melancolia que eu sentia e que era, no final das contas, a única coisa ali que me acolhia. Porque doía. Doía muito. E doía mesmo porque teria de doer.

Mas foi na aflição que percebi que aquilo havia sido o capítulo final de uma história, e que embora ainda muito me fizesse sofrer a moça da pedagogia, havia sido sim a primeira vez, como no intróito de tudo eu queria. A primeira vez em que eu amei. E a primeira vez que eu sofri por amor.

E doeu por algum tempo, mas depois de algum tempo não doeu mais. Porque assim teria de ser. E foi.

23/07/2015

Carlos Eduardo dos Santos Galvão Bueno

Galvão Bueno é e sempre será o grande nome da narração esportiva no Brasil. E talvez para alguns essa pareça uma afirmação precipitada, tanto por outros que trabalharam ou ainda trabalham na área quanto por aqueles que estão por vir. Mas não tenho medo de prognosticá-la.

Por mais que apareçam outros nomes, por mais que se discuta a qualidade de outros narradores, nenhum deles falou com "poder de vida e morte" a respeito de um assunto como Galvão Bueno -- logicamente usando a tevê Globo, que nos anos 80, 90 e começo dos 2000 detinha um monopólio que talvez nenhuma emissora em qualquer parte do mundo tenha tido. E como a televisão está em pleno declínio, é muito difícil que algo assim, de uma mesma pessoa falando pra tanta gente, volte a acontecer.

Acabei ontem de ler o livro que ele chama de auto-biográfico, "Fala, Galvão". Ainda que sim, seja uma biografia, é mais um livro de causos e opiniões do narrador do que um exemplar detido em contar sua carreira pormenorizadamente. Isso fica evidente desde o começo, com o prefácio do Ronaldo Nazário, com um tom extremamente informal e bajulador, e a introdução.

É um bom livro para quem não conhece Galvão mais a fundo. Eu nunca o vi pessoalmente, mas boa parte das histórias contadas eu já conhecia, seja por ele as ter apresentado na televisão, em entrevistas, seja pela boca de outras pessoas que cobriam a F1 e futebol na época e que eram amigas ou muito próximas ao jornalista.

O mais interessante, porém, é o que ele não diz. Toda a publicação é calcada em bajulação e de críticas e comentários enviesados (como quando ele afirma que Massa, de quem é muito amigo, deveria ir à justiça pelo campeonato perdido em 2008; que Senna foi um herói; ou que Parreira e Felipão foram uma boa coisa pra seleção em 2013, algo que é modificado nas páginas escritas depois do 7 a 1, mas tirando a dos dois da reta e colocando a de Marin -- uma figura fácil de bater nos dias de hoje). Mas fica implícito algumas das maiores qualidades e defeitos de Galvão.

A maior sacada de Galvão foi entender para que público falava e do que falava. Sempre foi um estudioso das modalidades, gostava de acompanhar todas desde a adolescência, uma cultura esportiva muito rica e sempre gostou de falar. Um falastrão, como eu, que na escola no Ensino Fundamental ganhei o carinhoso apelido de Galvão.

Galvão muitas vezes falava mais com o coração sobre os acontecimentos esportivos do que com a razão, uma personificação um tanto interessante do homem cordial do Sérgio Buarque. E sempre teve um tempo muito bom na colocação de frases, algumas de efeito. Naquela época, no seu esplendor, final dos anos 90, o "Ronaldinho" arrastando o r; o "Sai que é sua Taffarel" e alguns outros bordões marcaram bastante. E marcavam porque sabia usá-los. Alguns outros narradores da atualidade parecem ter esquecido do quão importante é ser natural. Ficar a falar "Que beleza!" ou "Não, não é assim!" a cada 10, 15 minutos, é forçar a barra.

Já Galvão Bueno, apesar de falar demais, sempre foi muito técnico na narração dos fatos em si. Saía do ponto quando começava a tentar comentar as partidas e as corridas. Mas na narração do fato, no Brasil pelo menos, nunca houve alguém com maior precisão nas pontuações que davam sentido ao enredo.

E aí é que está: Galvão talvez tenha sido o primeiro jornalista esportivo que tenha sacado (ainda que ele nunca vá admitir isso, o que explico depois) que o brasileiro não gosta tanto de esporte. Gosta de festas, histórias -- e histórias novelescas, que a Globo se especializou em contar e que é, na prática do entretenimento, ou era no século XX, o programa predileto dos brasileiros. Pronto: era o herói, o vilão; o nós, o eles; o Senna do Brasil, o Prost não-sei-do-quê; o como é gostoso ganhar da Argentina.

Galvão soube sacar isso, colocou na mesa o seu coração de torcedor apaixonado, certo grau de didatismo, somou as técnicas que foi a desenvolver pra reduzir um pouco a importância da sua voz, que ele considerava ser seu ponto fraco (uma bobagem!), e pronto: teve uma subida meteórica. Em 90 já era o narrador número 1 da Globo em uma Copa do Mundo. 6 anos depois de começar a narrar, em 74, ele já estava na Globo.

Nos últimos anos, especialmente a partir da Copa de 2002, o narrador apaixonado, polêmico, morreu um pouco. Ainda que tenha ganhado maturidade, não tenha tentado brigar com a imagem como o fazia com certa frequência no passado, aquele misto de empolgação, ufanismo, torcida e tudo o mais davam um caldo muito marcante. O Galvão Bueno dos anos 2010 já não é sombra do narrador que foi um dia. Ainda que a meu ver tenha feito a melhor e mais marcante narração no 7 a 1, com o "lá vem eles de novo" e o "virou passeio", em uma precisão cirúrgica na colocação e no momento típicas do Galvão, as suas narrações hoje são arrastadas, os enredos por ele criados já não fazem muito sentido e os erros são muitos: seja do nome de jogador, pilotos bem como resultados, entendimento de estratégias etc. Nos jogos que transmite da Liga dos Campeões o resultado é ainda mais desastroso: narra como se falasse pra quem nunca tivesse ouvido falar dos clubes europeus -- orientação da Globo, mas que ele cumpre muito mal.

Já os pontos negativos também são muitos. Alguns são claros e gritantes. Como a tentativa de brigar com a imagem, algo que foi a se reduzir nos últimos anos, mas que sempre foi uma de suas marcas e gerou enorme antipatia. Só que os piores problemas de Galvão são menos em relação à narração em si, e mais à forma como encara tudo: como porta voz político da Globo, da família Marinho.

Costumo dizer que a nossa forma de avaliar as pessoas, a misturar vida íntima com a pública, não é das mais corretas. Mas até por não ser um jornalista de formação acadêmica, como a maioria de sua época, diga-se, o narrador brasileiro nunca tomou esse cuidado. Era amigo de Senna fora das pistas e com o microfone na mão também -- e ajudou a criar a áurea de herói, mito. Sempre foi amigo de jogadores, técnicos e nunca teve constrangimento algum de conviver com uma série de personagens pra lá de controversos (pra dizer o mínimo), como Marin, Ricardo Teixeira e outros.

E com essas relações todas, que misturam sua profissão e alguns de seus muitos negócios, há sempre uma fala pública completamente alinhada com o que deseja a Rede Globo. Os discursos durante a Copa das Confederações, em 2013, de que os torcedores estavam "contra a corrupção" e não contra a seleção (as pautas das Jornadas de Junho iam muito além disso); a tentativa de encobrir os fracassos dos brasileiros em esportes individuais -- uma política da casa, e que o narrador sempre levou ao cúmulo do absurdo -- e a crítica a personagens que não são bem vistos pela Família Marinho (que se sente dona da seleção brasileira)  no futebol, como Dunga, que cortou privilégios na cobertura realizada pela emissora carioca, são fatos notórios na carreira de Galvão.

Quando Galvão fala e escreve -- como é nesse livro, com a ajuda do ex-jornalista da Nike e agora do Sportv Ingo Ostrovsky, sempre dá pra perceber que há uma tentativa de alinhamento com o que a cúpula da Rede Globo quer e deseja. O discurso de que o brasileiro ama o futebol, a seleção, essas ladainhas todas que a Globo vende, tão todas lá.

Outros jornalistas esportivos da casa nunca seguiram esse caminho. Nunca se deixaram ser voz oficial da família Marinho. Talvez até por isso a vaga de Bueno como narrador número 1 da casa esteja ainda muito tempo garantida embora a qualidade tenha caído muito -- o que é natural, afinal o homem já tem quase 70 anos.

Só que o Carlos Eduardo dos Santos Galvão Bueno, essa pessoa a quem cresci ouvir falando e que em muito tem a ver com o fascínio que ainda hoje me causa ver e analisar a imprensa esportiva -- às vezes até mais que o esporte em si -- poderia ter um fim de carreira melhor e se posicionar de forma mais digna. O narrador é daqueles que chama patrão de colega e que, repito, permeia sem constrangimento ambientes que colocam em dúvida a ética de um jornalista (não confundir com imparcialidade, algo que não existe). Galvão é mais do que a voz mais importante do esporte no Brasil. É a voz da família Marinho, detentora de um império. E como tal, por diversas vezes, buscou fazer dos enredos que criava pra entreter seus espectadores um espaço oficial do discurso dos donos da emissora.

22/07/2015

Breve comentário sobre relacionamentos livres.

Lautrec de1889: burguês boêmio nunca espantou a ninguém
 Comecei o dia de hoje com duas leituras muito agradáveis a partir do ótimo blogue Versoando a respeito de relacionamentos livres. São esses posts aqui (Sobre aquela coisa disfarçada de amor livre e sobre ciúmes e a posição da mulher na luta não-monogâmica) e sugiro ao leitor que os leia na ordem, pois assim respeitará a cronologia das postagens, já que o segundo vem quase que em complemento ao primeiro, mas sem deixar de acrescentar novas posições e críticas -- algumas das quais, claro, com quem eu não concordo e tentarei citar esses pontos ao decorrer deste texto.

A priori, há uma constatação óbvia a ser feita : as relações-livres não estão livres de problemas. Alguns entraves e dilemas inclusive que levam algumas pessoas a tentarem se afastar de relações monogâmicas estão muito bem pautadas pela blogueira Júlia Vita como parte das dinâmicas dessas relações. E compreender isso, embora pareça algo óbvio, como já dito, é de fundamental importância. Peremptório porque vivemos numa sociedade que suas regras morais são pautadas pela propriedade privada, donde o casamento, as relações afetivas e todo o resto não escapam, mas pelo contrário, se agarram e se tornam um complemento dessa visão de mundo.

Quem passou pelo ambiente universitário e teve um amigo extremamente revolucionário ou questionador das coisas e que, anos depois, após casar, se transformou em um retrógrado, reacionário ou alguém no mínimo apassivado diante das coisas?

A lógica do casamento não é algo dissociado do modo como nos relacionamentos com o mundo, as nossas relações de produção e o modo de produção em si. Uma das obras clássicas de Friedrich Engels é "A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado". E repara o leitor mais atento que a formação do conceito de família antecede à propriedade privada e conforme esta noção se torna hegemônica, é defendida e regulada por um aparelho estatal, ganha novas formulações e novos entendimentos até chegar o que é hoje.

Engels detalha por exemplo o modo de organização familiar sindiásmico, onde a mulher já tinha em muito sua liberdade sexual tolhida enquanto ao homem era dado a prerrogativa de se relacionar com outras mulheres, seja de modo escuso ou oficial por meio da poligamia, e a transição para o modo atual, o monogâmico. Enquanto naquele havia alguma equidade na relação mulher-homem na constituição do que se entendia por família, na nova forma de relação, monogâmica, o homem é o centro absoluto enquanto a mulher se torna sua mera propriedade: em Roma Antiga a esposa passa a ser tida ser como um patrimônio de um homem tal qual um cavalo, casas, latifúndios, mobílias etc.

Essa construção, que pauta da Antiguidade até os dias de hoje as relações afetivas, ganhou novos contornos, mas não foi erradicada e sequer modificada em sua substância. As novas facetas, inclusão de novos conceitos, não eliminaram a lógica geral, que continua a ser a mesma. A esposa de um aristocrata romano, por exemplo, tinha uma posição diferente da mulher que é casada com um homem em um Estado burguês hodierno. Um aristocrata era entendido como um ser melhor e sua riqueza, numa sociedade estamental, é algo perene. Numa sociedade calcada no liberalismo, ideologia burguesa, a lógica de uma sociedade estratificada por imposição legal é abolida. E assim como uma propriedade pode mudar de mãos, um homem rico ficar pobre e o pobre ficar rico (pelo menos teoricamente), a mulher vai poder se divorciar, ter novos parceiros, enfim, ser colocada à disposição de novas possibilidades -- e não que tais avanços tenham ocorrido naturalmente, mas fruto de muita luta de movimentos de contestação à ordem.  Só que ela vai continuar sendo uma propriedade.

E mais: a questão não é apenas contestar a ordem, é como a entendemos, como a criticamos e o que em seu lugar nós propomos. As novas formas de compreensão de família, passados dois séculos das revoluções burguesas e embora tenham se modificado, reafirmam peremptoriamente a parceira como propriedade privada. E cada vez menos se tem debatido este ponto, por incrível que possa parecer e para o susto dos desavisados que acreditam que a História é, por fim, a superação e sempre o progresso. Há sim os retrocessos e alguns progressos não tão progressistas. Basta observar que há uma grande inquietude até de teóricos vulgares de relacionamentos e programas de entretenimento na televisão pra encontrar "a mulher" e o "homem" em uma relação homossexual, porque para essas pessoas qualquer forma de organização humana não poderia intransigir à lógica "inquestionável" do capitalismo, a propriedade privada e os papéis sociais do que manda e do que obedece.

E aí chegamos ao ponto fulcral deste texto, que é como o entendimento de amor livre, relacionamentos abertos etc., em desenvolvimento em sociedades capitalistas no Ocidente, não parte na maioria das vezes de uma noção questionadora dos laços "propriedade privada e relações amorosas", mas que, como as monogâmicas, se tornam uma extensão e um complemento do conceito. Não questionam o bojo, mas tentam apenas aparar suas arestas -- recriando apenas novas formas postiças de relação -- e por isso emulam miseravelmente os mesmos dilemas e problemas já que a essência é a mesma.

Aliás, a própria pontuação do "amor livre" nos anos 2000 bebe muito na herança do movimento modista de classe média que se veio a conhecer como yuppies: jovens de classe média, totalmente focados no trabalho e que, aos finais de semana, em lugares previamente dispostos para tais finalidades, vão em busca de entretenimento e de relações, sempre efêmeras, não raro encerradas ali mesmo depois de concluídas. O yuppie é um modelo vivo de sociedades calcadas na lógica do capitalismo neoliberal, onde tudo é propriedade, produto e pode ser comercializado. 

De algum modo, em algum momento, parte dessas pessoas ou as que vieram depois e beberam da herança começaram a criticar a interferência e a coerção social e estatal quanto à sua forma de viver. E um ponto muito importante: não é uma crítica que é necessariamente de esquerda nos dias atuais. A direita defensora do Estado mínimo tem muitos autores que versam sobre. E o conceito de amor-livre, de relacionamentos abertos e várias formas de relações que se distanciam pelo menos formalmente das tradições da instituição da família monogâmica passaram a ser defendidas. Só que o limite da crítica é esse, não vai adiante, não atinge a base da organização societária capitalista.

O problema do ciúme, conforme citado no texto da Júlia Vita, é uma decorrência disso, já que em muito é pautado pela idéia de que nosso parceiro ou parceira nos pertence. Concepção de propriedade privada. É claro que não apenas isso define a existência do ciúme, um fenômeno complexo, porém é uma base central para sua compreensão. Outra é a insegurança. E essa em grande parte é fomentada pela padronização das formas de vida própria das sociedades capitalistas, de como os humanos devem ser fisicamente e tudo o mais. A busca por esse ideal, por se enquadrar em um padrão definido e muito restrito, a transformar relações em papéis sociais (o pai de família; a dona de casa) e isso tudo em sociedades cada vez mais individualistas, que negam o social e partem sempre do pressuposto de que o "eu"' é a régua de tudo, geram uma série de entraves emocionais que inviabilizam uma relação saudável entre duas pessoas - seja ela monogâmica, aberta ou livre, de amizade ou amorosa.

E uma vez mais chegamos ao paradoxo que é o problema existencial de toda a esquerda não-comunista: como humanizar o mundo sem ter que acabar com o capitalismo? E cada vez mais as respostas que estão sendo dadas é que não há como fazê-lo. Os limites de uma sociedade capitalista são e serão sempre estes, embora mude de formas, abra maiores leques de possibilidades em virtude da luta da classe trabalhadora. Afinal, algo deve mudar para continuar tudo como está. Pelo menos as aparências.

Romper com isso e avançar significa quebrar as amarras com a ordem capitalista. E para romper com a ordem capitalista é necessário pontuar claramente o que é e não é um pensamento burguês ou pequeno-burguês. Não entender a centralidade da organização do trabalho na vida das pessoas, como essas formas são reproduzidas no dia a dia, na vida íntima e pública, é não romper com a ordem capitalista. Tentar ver o mundo por gradações de gênero e se limitar a elas, do homem-branco-hétero-cis até chegar na mulher-negra-lésbica-trans*, é ver o mundo de uma forma pequena-burguesa: mulheres negras ricas, famosas, não sofrem e nunca sofrerão da mesma forma de exploração que pessoas pobres, sejam brancas, amarelas ou negras. O genocídio perpetrado contra negros nas periferias é patrocinado por uma classe média branca, mas é efetuado por uma polícia cada vez mais negra e é legitimado por uma voz conservadora ressoando meios de comunicação dentro dessas próprias periferias.

E a questão é bem simples: o cerne de toda exploração, preconceito, discriminação é a idéia de que o outro não é um igual, não é portador dos mesmos direitos e deveres. E quando você tem uma sociedade dividida em classes, por mais que as pessoas digam o contrário, elas nunca se verão como iguais porque nem são educadas para tal e nem as condições materiais apontam para isso.

É por isso que as lutas segmentadas que a pós-modernidade tanto evoca, seja o ateísmo pela sociedade laica, seja o feminismo não-classista pelos direitos das mulheres, o movimento LGBT-não classista ou as pautas de relações afetivas não-monogâmicas sempre vão esbarrar nos limites do capitalismo. E seus projetos de liberdade, extremamente importantes, ficarão sempre limitados a uma série de normativas sistêmicas: como por exemplo quem vai usufruir ou não dos parcos avanços conquistados, geralmente restritos à burguesia e, quando muito, à classe média.

Não é esse o mundo que queremos, pois. Os avanços precisam ser estendidos a todos. E precisam ser conquistados por inteiro.


08/07/2015

Verdades e mentiras um ano depois do 7 a 1

Hoje estamos a completar um ano de uma data histórica para o futebol mundial: o dia em que a seleção da casa, a seleção mais vitoriosa, em uma Copa do Mundo, tomou uma sonora goleada. O Brasil perdeu de incríveis 7 a 1 da Alemanha. Muito foi dito e escrito. Mas o que é verdade e o que é mentira? Um pingue-pongue e de forma descontraída proponho pretensiosamente resolver tais dilemas. (rs)



A derrota do Brasil para a Alemanha foi o maior vexame da história do futebol.

Verdadeiro:
por mais que essa seja uma questão subjetiva, é difícil dizer que não: no torneio mais importante, jogando em casa, a seleção mais vitoriosa... E perde de 7 a 1. Cinco gols nos primeiros 30 minutos, o que acabou com o jogo antes mesmo dele de fato se desenrolar. Como explicar para qualquer amante do futebol que dizia que o Brasil era o país do futebol (muito mais pelo futebol jogado do que o apreço do povo pelo jogo) e que era surrado daquela forma? E para o planeta todo ver.

A Alemanha se preparou desde 2006 pra ganhar 2014.

Mentira: uma seleção do porte da Alemanha jamais vai jogar 8 anos para testes pra só aí buscar uma Copa do Mundo. Isso é uma das lendas típicas de uma imprensa bastante interessada em vender histórias fantásticas sem antes pesquisar a veracidade delas. Houve uma reformulação no futebol alemão a partir de 2000 com um pensamento claro: melhorar a qualidade do futebol. Essa melhoria se entendia por Bundesliga (campeonato alemão) e seleção. Em 2006 alguns jogadores já apareciam (como Lahm e Schweinsteiger) e se somaram à geração de 2002, vice-campeã mundial. O intuito -- e não poderia ser outro -- era vencer o mundial em casa. A derrota para a Itália foi melhor aceita porque entendeu-se ser ali o limite daquela equipe -- que meses antes, em amistoso, havia perdido para aquela mesma Itália por 4 a 0.

Em 2010 com Joachim Löw, que substituíra Jurgen Klinsmann, a Nationalmannschaft fez uma vez mais uma Copa boa, com algumas ótimas apresentações, e terminou como na Copa anterior com o terceiro lugar. Como a base ainda era jovem, houve uma paciência maior. Paciência que começou a se esgotar com o insucesso da Euro em 2012 e que chegaria no limite caso a Alemanha não saísse campeã no Brasil. Diria que o Brasil não era o lugar marcado para vencer, mas a data limite.

Felipão foi o maior culpado.

Verdadeiro, mas...
todo o trabalho da comissão técnica foi ruim. Ficou-se com a imagem de um jogo bom, contra a Espanha, na pouco valiosa Copa das Confederações, e o esquema tático ficou calcado apenas naquela perspectiva: pressão na saída de bola; chutão do David Luiz quando a zaga tivesse a ser pressionada; e que o Neymar resolvesse na frente. Muito pobre. E quando o Brasil enfrentou a Alemanha, um time mais forte, tentou fazer o mesmo e deu o contra-ataque. Resultado? Gol da Alemanha.

Alemanha era muito superior ao Brasil e por isso venceu com facilidade.

Controverso:
A Alemanha era sim superior. Mas quanto? Talvez um 3 a 0 (sem Neymar e Tiago Silva) descrevesse a diferença técnica e tática dos dois times. É ainda assim uma vitória com facilidade. Mas o 7 a 1 está totalmente fora de cogitação. Se Brasil e Alemanha jogarem umas 20 vezes, a chance do placar se repetir é zero. E com todos os problemas pelos quais passa a seleção brasileira, mesmo assim hoje ela está mais arrumada que a alemã, que está se reconstruindo após 2014 (por isso inclusive era uma data limite, já que muitos jogadores já estavam na casa dos 29, 30 anos e saíram da equipe).

O lado emocional atrapalhou.

Verdadeiro:
nenhuma seleção do porte da do Brasil toma de 7 apenas por questões do futebol, de campo e bola. O time era inferior, o técnico pilhou demais o time, com uma estratégia de ver um inimigo a cada esquina (o velho discurso do Scolari de que havia um complô contra o Brasil...), havia uma bagagem pesada (basta lembrar da série da Globo com os jogadores lembrando de histórias de vida difíceis...) e muita pressão. Com a estratégia de jogo errada e erros individuais crassos de David Luiz, o Brasil tomou 1 a 0 e sentiu o baque. Mas manteve-se vivo. O 2 a 0 derrubou o time. E dali em diante foi uma sucessão de erros e descontroles.

Se a Copa fosse na China e não houvesse todo aquele cenário de "vencer ou vencer", a chance do time se retrancar depois do 2 a 0 e o jogo encerrar com este placar -- um placar normal -- seria bem razoável.

Neymar foi o melhor jogador brasileiro na Copa.

Verdadeiro:
ao lado de Thiago Silva (apesar do descontrole contra o Chile nos pênaltis e o cartão bobo no jogo contra a Colômbia), que fez partidas muito seguras na zaga, segurando inclusive a impetuosidade e as várias falhas de marcação de David Luiz, Neymar foi o grande nome do Brasil no mundial.

Fred foi o pior jogador da Copa e do Brasil.

Mentira: Fred era e ainda é o melhor centroavante brasileiro. Deu azar de jogar em um esquema que a bola chegava muito pouco. Mas mesmo assim era peça importante, abrindo espaços para Neymar e a fazer o pivô. Fred não foi pior que Paulinho, por exemplo, um jogador que havia feito boas apresentações na Copa das Confederações (por uma série de motivos que iam desde estar na metade de temporada por atuar no Brasil enquanto os outros vinham da Europa e em final de temporada; até pelo nível da competição, mais frágil) e que no mundial foi uma aberração. Outro que me pareceu muito pior que Fred -- embora a imprensa que não sabe analisar jogo o tenha alçado à posição de ídolo -- foi David Luiz. Várias lambanças desde o início da Copa do Mundo. Sempre salvas pelo polivalente Thiago Silva. Na semifinal não estava Thiago. E David Luiz foi uma catástrofe: 6 dos 7 gols foram em erros seus.

Essa geração do Brasil não tem qualquer chance de vencer uma Copa.

Controverso:
muito acima da média, mesmo, só o Neymar. Thiago Silva é muito bom zagueiro e o resto é de bons jogadores quando em bons esquemas. Podem sim formar um time campeão. Mas antes precisariam de um bom técnico. Eis a parte mais difícil.

07/07/2015

Grande derrotada no plebiscito na Grécia foi Merkel.

O KKE (O Partido Comunista Grego) saiu-se muito bem ao destrinchar o que estava em jogo no referendo realizado no último Domingo (leia aqui): duas propostas de austeridade, uma mais branda e em prol da burguesia nacional, capitaneada pelo Syriza; e o asfixiamento imposto pela Troika, mais especificamente pelo governo alemão.

Uma saída que chutasse os fundilhos da Troika, da burguesia nacional, da exploração de classe e pudesse, desta forma, trazer dias de prosperidade pra classe trabalhadora grega nunca esteve em jogo desde a eleição do Syriza - o PSOL grego. O discurso sempre foi de conciliação e busca pelo entendimento. E nessa perspectiva, diga-se, o Syriza na figura de seu primeiro ministro Aléxis Tsípras sempre foi bastante ponderado, nunca puxando a corda para além do que o "jogo burguês" poderia aceitar -- algo que o banditismo travestido de jornalismo no Brasil como por exemplo a Globo News e o Jornal da Globo tentaram fazer parecer o contrário. Outros bufões e bobos dos jornais da grande mídia que ninguém lê foram na mesma linha.

Essa afirmação é tão incorreta e tão absurda que ignora inclusive o caráter recente da imposição de austeridade da Troika, que é político-eleitoral. No final do mês passado (como você pode ver aqui) falava-se que um acordo estaria praticamente concluído. Essa mesma imprensa brasileira o noticiou. Mas a Comissão Européia, em face à pressão da periferia da Zona do Euro e do temor do que poderia ser considerada uma vitória do Syriza, a espalhar assim uma onda que poderia derrotar partidos que aplicaram o plano de austeridade (mais notadamente o caso da Espanha, onde o Podemos é uma espécie de Syriza espanhol e se projeta com grandes chances de vencer), a Comissão Européia resolveu retroagir e desfazer o que estava praticamente acordado.

E foi aí que o governo alemão, que nesses últimos anos, com a relativa estabilidade econômica em face à difícil situação dos demais países do euro, tomou a liderança da UE e, na figura de Merkel, coordenou a expansão de políticas para os países da região, incentivando e por vezes impondo planos de austeridade, tomou uma decisão arriscadíssima: sufocar o Syriza. E esse foi o tom da última proposta da Troika: de rendição da Grécia. Tanto que houve o burburinho de que o Tsípras possivelmente renunciasse caso o "Sim" se saísse vitorioso no referendo.

A vitória do "Não" nos termos em que se deu (Com 100% das urnas apuradas, 61,31% dos eleitores optaram pelo "não" enquanto que 38,69% dos gregos votaram "sim") foi uma grande derrota para o governo alemão, para Merkel especialmente. A descompostura do vice-chanceler alemão ao afirmar que "Tsípras destruiu todas as pontes que poderiam levar a um acordo" mostra o desespero diante da acachapante derrota. Um desespero de uma posição que não é uniforme dentro da Troika: o Fundo Monetário Internacional publicou recentemente estudo que corrobora com a visão do Syriza e afirma que o asfixiamento da economia grega seria péssimo para a UE, bem como o país precisa de empréstimos a juros mais baixos. Uma carta na manga que o novo Ministro das Finanças, Euclid Tsakalotos, que substituirá o carismático e competente Yanis Varoufakis, certamente usará nas próximas reuniões.

E o futuro da Grécia começará a ser decidido hoje, em Paris, numa mostra simbólica e clara de que Berlim vai aos poucos deixando a centralidade do comando político e ideológico da União Européia. E que esse, parece-me, vai rumando aos braços de François Hollande, que embora tenha feito coro com Merkel e seu governo com forte viés autoritário, foi mais flexível e diante dos últimos acontecimentos não tomou parte de forma incisiva da tentativa da Comissão Européia liderada pelos alemães em liquidar a Grécia e o Syriza. Os franceses agora aparecem como interlocutores mais razoáveis nesse processo.

Destarte, se não é possível afirmar ainda quais os desdobramentos para a Grécia do resultado do plebiscito e quais as próximas tendências políticas na Europa a partir da confluência desses acontecimentos, parece-me indubitável que Merkel e o governo alemão são os grandes derrotados desde já. E crise econômica interna que se avizinha é outro problema que a chanceler tedesca terá de enfrentar -- e que pode dar sinais agonizantes ao fim da gestão de Angela Merkel, aquela que foi depois de Hitler a primeira alemã a ter prevalência no processo político na Europa.

03/07/2015

Grécia: entrevista de Kostas Papadakis* a ODdiario.info

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Como avalia os resultados das negociações do governo grego com a Comissão Europeia?

O governo do Syriza-ANEL está há quatro meses em negociação com a troika, as “instituições”, ou seja, a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu (BCE) e o FMI, mas não a favor dos interesses do povo. Trata-se de uma negociação com os credores, que é a prioriantipopular, com a qual o governo trata de assegurar os interesses da burguesia grega no quadro do antagonismo geral que se desenvolve entre os Estados Unidos e a Alemanha, assim como entre os países da zona do euro, sobre a fórmula da gestão capitalista. Essa negociação reflete a confrontação geral em que a burguesia grega tem como objetivo, entre outros, assegurar um superavitbaixo para os próximos anos, passando capitais destinados à amortização de empréstimos para o financiamento estatal dos grupos empresariais. Com esses capitais como ferramenta, tentam se recuperar da crise capitalista. Portanto, os grupos empresariais e as associações (Federação de Indústrias etc.) apoiam o governo que se apressou a servir aos seus interesses. O acordo antipopular de 20 de fevereiro já previa que se mantivessem as leis antipopulares do memorando aprovadas pelo ND e pelo PASOK, enquanto se preparam novas medidas antipopulares no sistema tributário, privatizações, abolição de direitos de segurança social etc. As negociações estão levando a um novo acordo-memorando, seja qual for o seu nome.

Portanto os interesses do povo grego não são servidos se alinharem por planos antipopulares, que aliás implicam medidas antitrabalhistas bárbaras; ao contrário, é necessário lutar contra eles de modo combativo e sem passividade. O povo não é responsável pela dívida da plutocracia; nem a criou nem tem de pagá-la. Contra a lógica de uma renegociação antipopular, cujo resultado o povo já pagou e estão a chamá-lo para pagar de novo, o KKE pede ao povo que exija a abolição das leis antipopulares e a recuperação das perdas dos anos anteriores, abrir caminho para o cancelamento unilateral da dívida e, ao mesmo tempo, sair da UE, com o povo no poder.

Cada trabalhador deve pensar que o SYRIZA se tinha comprometido a romper com os memorandos, mas agora traz outro e mantém vigentes todas as leis do memorando. O KKE, ao contrário, apresentou de novo, em fevereiro, no Parlamento um projeto de lei para o cancelamento dos memorandos e das leis antipopulares pertinentes. Além disso, apresentou uma proposta para o restabelecimento do 13º salário e do 14.o, aplicação imediata do salário mínimo de 751€ como base para aumentos — que haviam sido abolidos pelo governo da ND e do PASOK — aplicação obrigatória dos convênios coletivos setoriais etc.

Como estão reagindo os que votaram com o SYRIZA sobre os retrocessos perante as exigências da Comissão Europeia que invalidam as promessas feitas durante e período eleitoral? E a classe operária?


As “promessas” eleitorais do SYRIZA, o chamado programa de Tessalónica, eram migalhas que de qualquer modo não tirariam as famílias da pobreza e da miséria. Tratava-se de medidas que reciclariam a pobreza mais extrema, mesmo sob a palavra de ordem: “contra a crise humanitária”, exonerando o próprio sistema capitalista, dando a entender que se trata de uma ocasião excepcional e não da própria natureza de um sistema explorador que está apodrecendo. Constituiriam mesmo os primeiros projetos de lei do governo que iam ser aprovados independentemente do resultado da negociação. Mas logo depois das eleições, “o programa de Tessalónica” transformou-se de um programa de 100 dias num programa de quatro anos. Assim, as promessas de restabelecer o salário mínimo passaram para um futuro longínquo e dependem do “apetite” dos próprios empregadores. Enquanto o imposto sobre bens imóveis (ENFIA) mantém-se no período próximo. Assim, os impostos existentes estão aumentando e o povo vai pagar muito caro o aumento das taxas de IVA. Ao mesmo tempo, o 13º mês (pelo Natal) foi adiado, mesmo para os mais fracos economicamente.

O aumento do limite de entradas isentas de tributação foi também adiado para os finais de 2016. Em contrapartida, estão promovendo as privatizações de portos, aeroportos, bloquearam as reservas disponíveis dos municípios, de organismos estatais e os fundos de segurança destinados a cobrir as necessidades populares básicas. Enquanto se está planificando o corte das pensões antecipadas e entre elas as profissões pesadas e insalubres, das mulheres trabalhadoras com filhos menores de idade etc.

Perante essa política governamental profundamente antipopular, os trabalhadores e outros setores populares pobres que acreditaram nas esperanças que fomentaram as forças da nova social-democracia do SYRIZA, não devem ficar decepcionados, mas sim tirar as conclusões políticas necessárias. Ou seja, que não existem “soluções fáceis favoráveis ao povo” quando o povo concede a responsabilidade a um governo que opera no quadro da UE e na senda do desenvolvimento capitalista. Portanto, o povo é soberano só quando possui os meios de produção, livre da UE, e pode satisfazer as suas necessidades com uma planificação científica central.

Como interpreta o enfraquecimento relativo da reação popular nos últimos meses? Quais são as perspectivas para a luta de massas no futuro próximo?


Para lá da repressão e das provocações utilizadas pelos governos da ND e do PASOK nos anos da crise, um fator determinante que foi usado para enfraquecer o movimento operário e impedir o desenvolvimento da sua união e da sua orientação de classe, foi que a classe burguesa e o seu pessoal proporcionaram a ideia de que outro governo de gestão burguesa se encarregará de resolver os problemas populares e dos trabalhadores. A intenção de apresentar o governo com o SYRIZA no seu núcleo como salvador do povo provocou uma contenção grave do movimento operário. Fomentou a passividade e falsas ilusões, do que resultou que exista mesmo agora um retrocesso na luta operária e popular.

Nos primeiros dias depois das eleições, o novo governo levou o povo a aplaudir ativamente os objetivos da burguesia nas negociações antipopulares. Poucos meses depois, cada vez mais gente compartilha as advertências do KKE sobre o caráter e a missão deste governo. Uma série de mobilizações de trabalhadores não remunerados, grevistas, contratadores nos centros de trabalho são um fenômeno diário. A greve dos trabalhadores no setor da saúde, em 20 de maio, foi um passo importante porque a situação nos hospitais estatais é explosiva dado que nem sequer têm gaze e os pacientes não só pagam caro por tudo, como ainda trazem os medicamentos de casa, materiais etc. As mobilizações que o PAME está organizando em 11 de junho, reclamando que não se aplique o novo acordo antipopular, podem significar uma mudança na força, na combatividade do movimento operário, podem marcar um novo ponto de partida para o confronto da ofensiva do governo, da UE e do capital contra o povo, para a recuperação das perdas. A organização do seu contra-ataque para a criação de uma aliança popular forte contra os monopólios e o capitalismo.

As divergências no movimento comunista internacional atualmente são óbvias. A que se atribuem? Qual é a posição do KKE?


Sim, efetivamente há desacordos e divergências em assuntos-chave de importância estratégica. Mas o crucial é determinar qual é a base sólida e os critérios para examiná-los. Os alicerces estão na cosmovisão marxista-leninista, nos princípios da luta de classes, na estratégia revolucionária. Só nessa base é possível fortalecer o verdadeiro caráter comunista dos partidos comunistas, conquistar a unidade da classe operária e a sua aliança com as demais camadas populares pobres, conseguir agrupar e preparar as forças trabalhadoras e populares para o derrubamento da barbárie capitalista, pelo socialismo-comunismo.

De outro modo, os partidos comunistas ficam expostos ao efeito corrosivo das forças burguesas e oportunistas, ao parlamentarismo, à incorporação na gestão burguesa, às alianças sem princípios, à participação em governos de gestão burguesa sob o título de “esquerdas” “progressistas”, à opção e à alienação por detrás das uniões imperialistas, a convergência com forças e formações oportunistas, como o chamado Partido da Esquerda Europeia ou a sua expressão política, GUE-NGL. A base de tudo isso é a lógica daninha de etapas entre o capitalismo e o socialismo. O etapismo, que historicamente não se confirmou em caso algum, está aí para embelezar o capitalismo, para criar ilusões de que se pode humanizá-lo através da gestão burguesa, com a participação dos partidos comunistas.

Esse caminho levou à mutação e dissolução de partidos comunistas, por exemplo, na França, na Itália, na Espanha etc. Essa percepção de “etapas”, que se baseia em elaborações obsoletas do movimento comunista internacional, acalma o derrubamento do poder capitalista, o próprio socialismo, e fragiliza a preparação da classe trabalhadora e dos seus aliados para essa tarefa monumental. Na pergunta crucial “revolução ou transformação”, o etapismo opta pela transformação. O KKE quer um debate aberto e essencial entre os partidos comunistas sem etiquetas e sem aforismos sobre assuntos-chave de importância estratégica para que se elabore uma estratégia revolucionária contemporânea. Cada partido é responsável por responder e justificar a sua opinião e postura.

Como o KKE encara a ofensiva atual do imperialismo em múltiplas frentes: Ucrânia, Oriente Médio, América Latina, China, Rússia?


Os Estados Unidos, tal como a União Europeia, a NATO e os seus governos, estão levando a cabo planos perigosos contra os povos. O fortalecimento da articulação da UE com a NATO, assim como as intervenções imperialistas independentes da UE com a formação de um euro-exército regular e o fortalecimento das forças militares para executar guerras e missões imperialistas pelos interesses dos monopólios, confirmam a agudização dos antagonismos pelo controle dos mercados, das fontes e das rotas de transporte de energia. A corrida armamentista com as bandeiras da NATO, os programas avançados de armamento dos chamados países emergentes como a China e a Rússia e de países do Oriente Médio, são reveladores e constituem um prelúdio perigoso da forma e dos métodos com que o sistema capitalista procura se recuperar da sua crise profunda. São pura hipocrisia as alianças das potências que estão “dispostas” a atuar contra os jihadistas, que foram apoiados pela NATO, Estados Unidos e a UE, os traficantes de pessoas nos países onde a UE e seus aliados entraram a ferro e fogo em intervenções imperialistas causando enormes vagas de imigrantes.

O governo grego, que subscreveu tudo isso, anunciou que vai criar uma nova base da NATO no Egeu para as necessidades da UE e da NATO e dos planos imperialistas e que disponibilizará forças armadas e bases a serviço da NATO. Subscreveu todos os comunicados militares da UE nas reuniões e dos ministros de assuntos exteriores e de defesa da UE, enquanto fortalece as relações políticas, econômicas e militares com Israel que ataca o povo palestino. É esse o governo das «esquerdas» do SYRZA-ANEL – e queremos sublinhar que as forças que se apressaram a celebrá-lo ficaram irremediavelmente expostas.

Os povos devem intensificar a sua luta para frustrar os planos imperialistas, pelo que é necessário estar em vigilância militante. O KKE desempenha um papel essencial na luta contra a implicação da Grécia nos planos imperialistas, exige que regressem as forças militares gregas das missões euro-atlânticas ao estrangeiro, que sejam encerradas as bases dos Estados Unidos e da NATO. O KKE luta pelo afastamento da NATO e da UE, sendo o povo dono do seu destino.

Como vê a nova estratégia de Barack Obama sobre as relações dos Estados Unidos com Cuba?


É particularmente importante que a longa luta do povo cubano em condições muito difíceis e a mobilização mundial de solidariedade contra o bloqueio inaceitável dos Estados Unidos tenham exercido pressão sobre o governo dos Estados Unidos para discutir o seu levantamento. O mesmo acontece com a UE com a chamada Posição Comum e as sanções que impõe há anos contra Cuba.

Essa pressão e esse movimento mundial de solidariedade que se tem desenvolvido impulsionaram a libertação dos cinco patriotas cubanos.

Mas, não há qualquer complacência ou ilusão já que o imperialismo não deixa de utilizar tanto o engodo quanto o chicote com o fim de incorporar e subjugar os povos sob a sua estratégia. Por isso, é necessário que a solidariedade internacional revele os ajustes da tática do adversário para que não se apliquem os planos que o imperialismo internacional está preparando e que se implementem através de sanções, chantagem e ameaças ou negociações.

Qual a opinião do KKE sobre o chamado “Socialismo do século 21” e o papel dos intelectuais de esquerda da América Latina a esse respeito? Mesmo hoje em dia, consideram como modelo os chamados governos progressistas, de esquerda, da América Latina?


Ainda hoje os chamados governos progressistas, de esquerdas, da América Latina que constroem o “socialismo do século 21” são considerados como modelo. Essa fabricação ideológica opõe-se à própria experiência popular daqueles países, que estão experimentando a política antipopular, a pobreza, a exploração enquanto os monopólios estão enriquecendo. A fabricação ideológica do “socialismo do século 21” reúne as diversas correntes social-democratas e oportunistas, acadêmicos latino-americanos que garantem que falam em nome do marxismo, mas distorcem-no, porque o “socialismo do século 21” no seu conjunto caracteriza-se pela agressividade contra o marxismo-leninismo e o movimento comunista internacional, promovendo como solução as reformas burguesas que não afetam o poder do capital. É a expressão de certos setores da burguesia, sobretudo na América Latina, que aspiram a uma melhoria do financiamento estatal para a criação de infraestruturas, mão-de-obra especializada necessária para os monopólios – que não estão dispostos a financiá-los – a fim de aumentar a sua rentabilidade. Uma orientação semelhante existiu também nas décadas anteriores nos países da Europa Ocidental. Trata-se das necessidades das classes burguesas desses países para reforçar a sua posição no antagonismo internacional. O “socialismo do século 21” é uma fonte de distorção do conceito do socialismo científico já que não afeta o poder burguês. É apenas uma fórmula de gestão do sistema capitalista às expensas da classe operária e das demais camadas populares de cada país.

Quais as razões – em contradição com a posição de Marx sobre a extinção gradual do Estado – para que o Estado, em vez de enfraquecer, estava continuamente a se agigantar (URSS, Cuba, China)?


O estudo da experiência da construção socialista é o assunto de que o nosso partido se tem ocupado nos últimos 20 anos. Tiramos conclusões sobre os princípios da construção do socialismo através de um estudo a fundo, de um debate coletivo sobretudo da experiência da URSS, principalmente das decisões tomadas no âmbito da economia. Hoje em dia, esse debate é necessário para cada partido comunista. Porque, por exemplo, é um problema e uma expressão da situação difícil do movimento comunista internacional o fato de que hoje em dia existem partidos comunistas que negam os princípios, as leis científicas da construção socialista, o poder operário, a socialização dos meios de produção, a planificação e o controle operário e popular.

O KKE defende a necessidade da revolução socialista e os princípios da nova sociedade e, desse ponto de vista, participa no debate que está em curso no movimento comunista. Nessa perspectiva, examinamos, por exemplo, os acontecimentos na China onde, segundo os dados, prevalecem as relações capitalistas de produção.

Para chegar ao ponto de falar da extinção do Estado, uma pré-condição necessária é o fortalecimento das relações de produção comunistas, não o seu enfraquecimento. A experiência histórica da contrarrevolução, que ainda não acabou, mostra que a tarefa de desenvolver relações comunistas de produção e distribuição requer o desenvolvimento da teoria do comunismo científico pelo partido comunista através do estudo das leis da construção socialista. A experiência mostrou que os partidos no poder, na URSS e noutros Estados socialistas, não só não tiveram êxito nessa tarefa como também sofreram a erosão do oportunismo e se transformaram em veículos da contrarrevolução e da restauração do capitalismo.

O homem realizou conquistas destacadas no âmbito da ciência e da técnica, mas mudou muito pouco desde a Grécia e Roma, como mostram as guerras, cada vez mais cruéis, e a escalada de crimes do imperialismo. A velocidade com que o “homem velho” reapareceu para milhões na Rússia e na China, e está a aparecer em Cuba, parece mostrar que a transição do socialismo para o comunismo será muito mais lenta do que o previsto por Marx e Engels. A história desmentiu o mito do “homem novo”? Que pensam disso?


Não concordamos com essa ideia. Tudo o que afirmaram Marx e Engels, assim como Lênin, se confirmou e confirma de modo absoluto hoje em dia. A resposta à pergunta surge no próprio caráter da época inaugurada pela Grande Revolução Socialista, que é a época da transição do capitalismo para o socialismo. O capitalismo está na sua última fase imperialista. As condições materiais para a construção do socialismo já estão amadurecendo. O partido comunista deve, portanto, ser capaz de responder com a sua estratégia e tática para o desenvolvimento da luta de classes, ajudar a classe operária a estar consciente da sua missão histórica, a prepará-la para o confronto com o verdadeiro inimigo, ou seja a UE, os monopólios e o seu poder. A elaboração da estratégia revolucionária é a tarefa dos partidos comunistas independentemente da correlação de forças.
O objetivo é que os partidos comunistas que crêem na luta de classes e seus princípios, na necessidade histórica do derrubamento do poder burguês e na construção do socialismo-comunismo elaborem uma estratégia que cumpra com a própria razão da existência de um partido comunista: reunir forças para o confronto com o poder dos monopólios e não para a gestão e perpetuação da barbárie capitalista. O capitalismo é um sistema apodrecido e obsoleto e nenhum modo de gestão pode dar-lhe rosto humano. A luta pelo socialismo, portanto, não é uma declaração para um futuro longínquo, mas um tema-chave que determina todos os outros. A questão-chave é como um partido comunista trabalha dia após dia para alcançar esse objetivo.

* Membro do CC e eurodeputado do KKE


Tradução: Manuela Antunes

02/07/2015

Remédio final para o fundamentalismo e o fascismo é o comunismo

Em um país comunista não há espaço para Felicianos, Malafaias, Cunhas, jornalismo-banditista (como esse aqui citado no texto da Eliane Brum ) e por aí vai.

Pense nisso, meu caro esquerdista encantado com a democracia burguesa e seu respaldo à liberdade de massacrar vulneráveis.

Até quando vamos aceitar que os trabalhadores sejam sempre os derrotados, sempre aqueles que pagam as contas das crises, aqueles que perdem seus filhos para o crime (incluo as forças da ordem) ou mesmo se tornem vítimas deste, hein?

Que mundo você deseja? Certamente esse que eu vejo todos os dias aqui no Brasil passa longe de qualquer coisa que eu deseje e imagino que você também. É a barbárie. Uma barbárie que tem uma Câmara dos Deputados que mais parece seção de comentário do G1; barbárie que fez uma moradora de rua aqui em Itapecerica morrer de frio; e outro dia produziu a morte de um senhor por uma criança de 14 anos. 14 anos! À bala... e para comprar drogas. Uma criança que nem sequer frequentava uma escola... e que possivelmente estará na boca de fascistas para exigir uma nova redução da maioridade penal.

Enquanto isso... Cuba é o país com o menor índice de homicídios na América Latina, ótimos índices na educação e na saúde. E sem Cunhas e Felicianos.

Pense nisso.