Por Golbery Lessa - Membro do Comitê Central do PCB
Se a esquerda deseja ter clareza sobre como agir diante da ampliação
das manifestações organizadas por setores reacionários da classe média,
precisa procurar uma explicação científica para o fato e não embarcar
na versão apresentada pelo governo federal. É mais fértil procurar
entender as bases econômicas, culturais e políticas do reacionarismo do
que concebê-lo como um improvável desvio moral simultâneo de milhões de
indivíduos. Seria desastroso fundamentar apenas na intuição o discurso e
as ações contrários às dimensões ultradireitistas das manifestações ocorridas nos últimos tempos. Para a esquerda, é mais importante
tentar compreender os fatos do que promover uma competição para saber
qual dos seus analistas ridiculariza melhor o bizarro discurso das
passeatas verde-amarelas e cria o mais engenhoso anátema para
estigmatizar os setores médios.
É infértil fazer uma análise
estanque das ideias e das posições políticas da classe média. Não é
sustentável considerar que este grupo social tenha condições objetivas
apenas de comportar-se e expressar-se de modo conservador. Como
demonstrou Karl Marx, ainda no século XIX, é próprio dos setores médios
da sociedade moderna oscilarem entre posições ideológicas e políticas de
direita e de esquerda e, inclusive, misturarem essas posições
antípodas. Na atual conjuntura brasileira, uma das provas desse
movimento pendular é o fato de que um setor numeroso da mesma classe
comporta-se de maneira progressista, defende a esquerda e repudia o
discurso do tipo proferido por Jair Bolsonaro.
Nos últimos anos, o
marketing do governo federal apostou na estigmatização dos setores
médios com o objetivo de aproveitar o descontentamento de alguns dos
seus estratos com o PT para “provar” que “a tradicional elite
brasileira” seria contrária aos “avanços sociais” dos governos Lula e
Dilma. Manipulou o sentido da palavra “elite” para que esta abarcasse
apenas a classe média e fez desaparecer nessa bruma sociológica a grande
burguesia aliada aos petistas. A família com renda de cinco salários
mínimos ou mais começou a aparecer na fala governista como a adversária
natural dos trabalhadores e a senadora Kátia Abreu, para surpresa do
público, passou a ser mostrada como heroína da economia brasileira. Como
cereja do bolo dessa sociologia pelo método confuso, possivelmente
criada pelo marqueteiro João Santana, enquanto a classe média real se
contraía, os governos petistas fantasiavam sobre a existência de uma
“nova classe média” formada pelas famílias de trabalhadores com carteira
assinada e acesso ao consumo de massa.
Para compreender as
últimas manifestações de direita contrárias ao governo Dilma é preciso,
igualmente, desconfiar dos motivos alegados pelos próprios setores
médios envolvidos, pois um grupo social não é, necessariamente, o que
afirma de si mesmo. Para parte da esquerda, é tentador imaginar que uma
fatia da classe média está insatisfeita apenas devido a arraigados
preconceitos contra os pobres, as minorias étnicas, a população LGBTT, o
campesinato e o operariado, entre outros grupos. Entretanto, se
observarmos os dados empíricos existentes, é possível perceber que a
insatisfação tem outros motivos, a maioria de ordem econômica.
Comecemos pelo que tem sido esquecido pela maioria dos analistas:
observemos os dados empíricos sobre a trajetória econômica e demográfica
da classe média na Era PT. Entre 2001 e 2013, na Região
Metropolitana de São Paulo (RM-SP), palco da maior manifestação do dia
15 de março passado, segundo a PNAD/2013, o número absoluto de famílias
de classe média (consideradas como aquelas cuja pessoa de referência da
família tinha renda mensal de cinco salários mínimos ou mais) diminuiu
31,57%, enquanto o número absoluto de famílias da classe trabalhadora
(consideradas como aquelas com renda mensal inferior a cinco salários
mínimos) ampliou-se 57.64%. Se observarmos a variável contabilizando a
renda de todas as pessoas do núcleo familiar, a situação melhora para a
classe média, entretanto, a sua trajetória passa a ser de crescimento
(12,00%), mas muito menor do que o da classe trabalhadora (65,48%).
Mesmo nesse caso, os estratos entre 10 e 20 salários mínimos e acima de
20 salários mínimos tiveram encolhimentos absolutos de 23,00% e 38,90%.
A constatação é ainda mais surpreendente quando comparamos esses
números com aqueles das mesmas variáveis e dos mesmos parâmetros
imediatamente referidos entre os anos de 1991 e 2000. Nesse intervalo de
tempo, segundo os censos demográficos do IBGE, o número absoluto de
famílias de classe média no Estado de São Paulo (não tivemos acesso a
dados da RM-SP para o período) quase dobrou (96,61%) e o de famílias da
classe trabalhadora ampliou-se em apenas 19,70%. No país, os números
foram, respectivamente, 185,26% e 21,00%. Primeira conclusão: a Era PT
estancou o desenvolvimento demográfico da classe média e fez dois dos
estratos desse grupo social encolherem.
Se corrigirmos pelo IPCA
(Índice de Preços ao Consumidor Ampliado) o valor nominal da renda média
mensal das famílias calculado na PNAD/2013, constataremos que, entre
2001 e 2013, todos os estratos salariais da RM-SP tiveram um ganho real
de renda aproximado de 38%. Será que a melhoria da renda das famílias de
trabalhadores originou-se em recursos anteriormente de posse dos
setores médios? Como, ainda segundo a PNDA/2013, apenas 4,39% dos
integrantes da classe média da RM-SP eram, em 2013, empregadores de
trabalhadores não-domésticos (nesse número estão inclusos os membros da
grande burguesia, pois IBGE não os discrimina) e 7, 07% dos assalariados
eram trabalhadores domésticos, a melhoria da renda dos trabalhadores na
Era PT não pode ter se originado, a não ser residualmente, de recursos
provenientes da classe média.
O aumento da renda dos
trabalhadores na Era PT foi determinado por uma significativa ampliação
da oferta de empregos formais em um momento de relativa estabilidade
monetária. Uma tendência econômica presente em dezenas de países do Sul
do planeta na primeira década do século XXI e condicionada pelo
deslocamento de grandes massas de capital para a periferia do sistema.
Configurou-se como um ganho dos trabalhadores na luta econômica contra o
capital, mesmo que as grandes empresas tenham abocanhado a maior parte
da riqueza derivada do aumento de produtividade e da ampliação das
escalas produtivas.
A classe média não perdeu nada com o avanço do
consumo dos trabalhadores, a multiplicação dos empregos e a expansão
(mercantilizada) de algumas políticas sociais, como o Bolsa Família e os
subsídios para matrículas no sistema de ensino superior. A baixa
qualidade da maioria dos cursos universitários e a precariedade da
assistência estudantil, entre outras variáveis, fizeram com que expansão
da presença dos trabalhadores no ensino superior não lhes tenha
garantido efetiva capacidade de competição com os setores médios no
mercado de trabalho, representando mais uma ganho simbólico do que uma
efetiva qualificação (com exceção das trajetórias individuais
particularmente exitosas e motivadas por talento excepcional).
A
contração demográfica de estratos da classe média foi determinada por
duas variáveis: 1) nos 13 anos considerados (2001-20013), o aumento de
38% na renda real mensal não foi suficiente para cobrir o crescimento
das necessidades de consumo impostas pela dinâmica da sociedade a esta
classe; e 2) a reestruturação produtiva das empresas privadas e órgãos
públicos, no início do século XX, baseada na diminuição dos níveis de
chefia e no avanço tecnológico dissolvedor de funções especializadas,
diminuiu muito os postos de trabalho para os setores médios. Esses
fatores atingiram de modo distinto os trabalhadores, pois suas
necessidades ainda eram as básicas e os postos de trabalho que podiam
ocupar multiplicaram-se.
A sociedade capitalista é estruturada de
tal modo que o nível de consumo imposto socialmente aos indivíduos
desenvolve-se numa espiral crescente e avassaladora. O telefone celular e
o computador pessoal, por exemplo, inicialmente apenas curiosidades
tecnológicas, tornaram-se instrumentos profissionais e sociais
incontornáveis. A primeira década do século XX no Brasil foi marcada por
um notável acréscimo de novas necessidades sociais para as famílias de
classe média, sendo suficiente elencar o crescimento da adesão aos
planos de saúde, a inflação das mensalidades escolares, a ampliação dos
gastos com equipamentos eletrônicos e o boom do acesso à banda larga.
Diante dessa tendência intrínseca ao capitalismo, apenas o aumento
correspondente da renda e das oportunidades de trabalho seria capaz de
evitar disfuncionalidades e insatisfação social. O choque entre o
aumento das necessidades de consumo impostas socialmente e a renda foi,
no período considerado, respondido pelas famílias com a renúncia ao
consumo e o endividamento, uma combinação politicamente explosiva.
Também nos governos petistas, a classe média tem perdido renda para o
grande capital, principalmente por meio de preços de monopólio cobrados
por faculdades privadas, bancos, planos de saúde, montadoras de
automóvel e outros setores. Parte deste grupo social imputará essas
perdas a qualquer governo dominado pelas grandes empresas e tenderá a
usar a retórica antigovernista à mão para explicitar sua crítica e
propor um governo diferente, via eleição ou impeachment. Se o governo
for do PSDB ou outro partido de direita, usará a retórica da esquerda,
como o fez na crítica aos governos FHC e Collor. Caso o governo seja
petista e o esquerda alternativa ainda não tenha adquirido visibilidade e
significativo peso político, usará a retórica da direita e mesmo da
extrema direita. Vejamos uma prova empírica desse movimento pendular:
poucos dias antes do segundo turno da eleição presidencial de 2002,
pesquisa do Instituto Datafolha mostrava que 60% da classe média
paulistana, replicando tendência nacional, votaria em Lula. Na véspera
do segundo turno da eleição de 2006, o mesmo Datafolha divulgava que
cerca de 50% dos setores médios paulistanos votariam no candidato do PT.
O antipetismo não é e nunca foi intrínseco à classe média brasileira.
O setor da classe média que se expressa, na atual conjuntura, por meio
de ideias reacionárias o faz, entre outros motivos, porque percebe os
governos petistas como dominados pelo grande capital, o adversário
econômico por excelência da pequena burguesia. A fala contra a corrupção
colocada no centro do discurso desses estratos médios é, além de uma
simplificação exagerada do complexo tema das políticas públicas, uma
crítica a governantes, de fato, capturados pelo empresariado. A atitude
dos governos petistas de defender os monopólios e abandonar a classe
média levou o discurso de setores desse grupo social a expressar-se numa
retórica contra o PT, seu passado proletário, as políticas sociais e a
esquerda em geral. É a fala de um anticapitalismo de direita (defende o
mercado, mas é contra a acumulação, deseja o individualismo, mas é
contra a igualdade de oportunidades, etc), que, por também não confiar
na oposição, apela cada vez mais para entidades abstratas, com a pátria,
em busca de forças políticas descompromissadas com o governo de plantão
e o grande capital. É uma situação típica na qual a classe média pode
se tornar presa das ideias fascistas. Algo particularmente perigoso num
momento em que os movimentos sociais e os sindicatos estão neutralizados
pelo direitismo do governo, pois os aludidos estratos dos setores
médios tornam-se uma vanguarda reacionária que pode imantar o resto da
população. A esquerda precisa, urgentemente, entender os motivos
econômicos desta classe social e lhe apresentar um programa alternativo.