06/08/2015

Sobre a moral comunista

Em tempos de predomínio de teses do pós-modernismo, de noções de temporalidades líquidas, de niilismo deturpado bronco e pueril, falar em moral é algo que assusta a muitos da esquerda moderninha. Acusá-los de cometer erros já é o segundo passo e o bastante pra ser acusado de stalinista.

No entanto, como essa esquerda de tendências não tem qualquer vínculo com o movimento comunista, às vezes apenas carrega uma de suas bandeiras por ela ser óbvia demais ou conivente com suas pretensões momentâneas, esta postagem não tem o escopo de tentar corrigir ou de mostrar-lhes as terríveis contradições, mas de alertar aos camaradas comunistas que muitos desses equívocos estão disseminados por aí e os comunistas eventualmente acabam por reproduzi-los sem muita consciência.

É verdade, contudo, que os comunistas não chegaram -- e nem chegarão! -- a dizer que Marx e Mises são complementares, mas muitas pautas pós-modernas estão aí difundidas. A principal delas é de que a existência é segmentada, um fator da vida não tendo relação direta e às vezes nem mesmo indireta com outros. Você pode ser contra a redução da maioridade penal, por exemplo, a alegar que o encarceramento não soluciona um problema social deste vulto, indo às ruas para protestar contra tal medida conservadora, e dias depois ir numa rede social pedir a criminalização da homofobia, que o lugar do Feliciano é na cadeia, afirmar que o Dunga deveria ser preso por uma frase de teor racista.

Concorde você ou não com tais pautas, há uma incrível contradição em tais posturas. Se o encarceramento não resolve, qual a garantia de que colocar um racista por chamar um negro de macaco na cadeia vai torná-lo um pessoa melhor e, uma vez inserido no sistema prisional, a sair de lá alguém consciente de que o racismo é um mal perverso, baseado em noções de darwinismo-social e que estão no âmago da sociedade dividida em classes? Eu diria que a chance disso acontecer é mínima. O punitivismo, aliás, é a melhor das armas pra transformar problemas sociais, de uma sociedade racista, por exemplo, em uma causa individual, de índole, de gente desviada do curso da normalidade.

O mesmo serve para pós-modernos que defendem o amor-livre, a relação aberta, sem amarras moralistas, mas que trata a companheira como mercadoria, produto, do qual ele se julga proprietário. É verdade que pós-modernos não fazem e nunca fizeram crítica acentuada à propriedade privada, no intuito de sua abolição, mas há muita coisa escrita contra o machismo, o sexismo e a coisificação das relações humanas. É portanto de uma hipocrisia cavalar não se pôr a pensar na totalidade desses fenômenos e não fazer autocrítica quanto ao procedimento no quotidiano.

Com isso eu não quero dizer, porém, que todo comunista deve ser adepto de relações livres, deve abrir mão da monogamia, deve ser ateu ou "descolado". Ou contra a pauta da criminalização da homofobia. A pauta do comunista é defender a diversidade das relações e a coerência. Pode-se ser um comunista católico, mas entender que o idealismo religioso é de foro privado, nada mais que isso, e que qualquer pauta pública deve ser abrangente o suficiente pra não excluir nenhuma crença religiosa ou não crença. Que o materialismo dialético é o modo que utilizamos para compreender a realidade -- outro ponto em que nos diferenciamos dos pós-modernos, para quem o marxismo é qualquer coisa e pode ser igualado por qualquer teoria de correntes burguesas.

E é claro que quem tem predileção por relações monogâmicas tem o direito de mantê-las, contudo sempre lutando e agindo (tentar minimizar ao máximo as contradições entre idéias e ações é sine qua non pra qualquer comunista) para afastar qualquer noção de coisificação, privatização e hierarquização em suas relações afetivas. Entender e praticar o fato de que homens e mulheres são iguais em direitos e deveres; que cis e transgêneros idem; que héteros, homossexuais e bissexuais também.

Não é correto e coerente lutar contra a homofobia e depois desmerecer eventualmente um homossexual por ter "comportamento afeminado" ou reproduzir transfobia -- algo tão recorrente nos movimentos pós-modernos. Desconstruir os preconceitos e as noções de inferiorização do outro devem ser prática inseparável da militância comunista.

Outro ponto de fundamental importância concernente à moral comunista é lutar diariamente contra noções individualistas e egocêntricas. O coletivo, em forma de bem comum, deve prevalecer sobre ações egoístas. Furar filas, dar um jeitinho pra colocar outras pessoas para trás, estacionar em vagas reservadas para pessoas especiais, não exercer bem a função quando a ocupar cargo público e não prestar serviços à comunidade (não falo de onguismo, por favor) de alguma maneira é não estar atento aos ideais de um mundo mais justo, correto e igualitário.

É por isso que o comunista deve sempre realizar autocrítica em relação às suas ações e as teorias que as embasam, a fim de observar se nelas não estão contidas contradições que podem ir totalmente contra aquilo que defendemos e pelo qual lutamos -- um erro muito comum nas ações dos pós-modernos, algo que, de forma alguma, podemos pensar em imitar e expandir. Eles querem reformar o que está podre. E por isso reproduzem parte da podridão. Nós queremos erradicar todo esse mar de lamas. E é por isso que não podemos abdicar de destruir desde a raiz hábitos nocivos e internalizados nas sociedades burguesas, mas que para tal, é importante dizer, não precisamos recorrer a velhos métodos -- como o apelo à punição.

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