24/08/2015

Futebol moderno e o torcedor "fanboy" no Brasil

Toda empresa tem como base a idéia de prestar um serviço ou vender um produto, que deve ter uma determinada finalidade para que possa assim alcançar um público, que por sua vez é chamado de mercado. É uma relação a princípio bastante simples, mas que foi a ser aprimorada com o passar do tempo, a exigir novas ferramentas, algumas das quais bastante complexas. A mais poderosa delas, sem dúvida, o marketing.

E dentro da estratégia de marketing há a propaganda, que tenta não apenas fazer um produto parecer bom para o consumo, mas também reforçar a idéia de que agrega um "valor" extra para o seu consumidor; um produto que tem personalidade própria, estilo, como se fosse uma pessoa, e que é essencial para a vida, transformando o supérfluo em necessidade.

A partir do aprofundamento dessas táticas, não seria difícil supor, apareceram os fãs dessas marcas -- pelo menos de modo massificado. Fãs que se encaram como se fossem verdadeiras personificações de tais valores e modos de ser, e que estes são por sua vez incorporados por meio da "compra" e nesses indivíduos se confundem.

É aí que surge a figura do "fanboy", o admirador convicto dessas expressões e que acredita ser o portador da identidade conferida por elas. Exemplos abundam atualmente e acredito que talvez o maior símbolo global seja a "Apple". Outro antro onde essa presença é muito forte é o dos videogames, com pessoas que se intitulam no Brasil "sonystas" (PlayStation da Sony); "caixistas" (Xbox da Microsoft); e "nintendistas" (Wii-U; Wii e outros consoles da Nintendo).

Mas onde entra o futebol nisso? Pois é bastante simples: como os times viraram empresas nessa fase moderna do esporte e são tratados como tal, a associação feita a partir do marketing é toda com base na propaganda de uma marca. Uma marca que transporta paixão e não apenas um time que joga um esporte. E é aí que a figura do "fanboy" aparece na relação do indivíduo com o clube de futebol. E sobretudo onde a relação "futebol-empresa" é melhor desenvolvida, isto é, nos clubes da Europa. Ou pelo menos nas principais ligas, como as da Espanha, Alemanha, Inglaterra e Itália.

Contudo ela tem suas peculiaridades: esse "fanboy" nunca tem um vínculo orgânico com a entidade esportiva, porque o elo existente é em muito efetivado a partir do campo da "idealização". Assim como os "fanboys" de uma empresa capitalista jamais serão um de seus acionistas, que compreendem a lógica ali existente, ou pelo menos parte dela, o "fanboy" futebolístico não é alguém próximo do clube. Isso não significa que esse não domine uma série de informações sobre o mesmo (informação como uma intermediação distinta de conhecimento). Em geral são pessoas muito bem informadas sobre as coisas que ali acontecem até pelo grau de fanatismo e a margem para tal que as tecnologias de informação atualmente propiciam.

No entanto a correspondência ao clube é completamente distinta do torcedor comum. Enquanto este se liga ao time de futebol por uma relação afetivo-parental, isto é, por estar em ambiente em que aquele clube exerce uma influência afetiva no conjunto das pessoas, seja positiva ou negativa, mas com algum grau orgânico, o "fanboy" se vê numa relação afetivo-mercadológica, sem qualquer organicidade. É apenas uma relação-produto, de compra e uso. É extremamente postiça, mas encoberta de acepções de afirmação de caráter e de justificação existencial.

E uma característica intrínseca a esse "novo tipo" no futebol transformado em mercadoria é a ligação a partir de uma "negação". Antes de um torcedor de um time, como no caso de um corintiano ou são-paulino, que a priori gostam dessas agremiações e só a partir delas criam distinções como as que as diferem dos seus rivais, essa pessoa é alguém que nega um determinado tipo de relação e constrói em cima disso suas predileções. É daí que surge a profunda relação de fanatismo e intolerância para o contrário.

No caso específico do "fanboy" no Brasil, pode-se notar, antes da sua afirmação enquanto torcedor de uma equipe européia, está a profunda ojeriza tanto ao futebol nacional quanto à relação das pessoas com seus times, bem como uma profunda "idealização" da marca para qual dispensa seu fanatismo no exterior, geralmente calcada em discursos prontos como idéias pré-concebidas de que são mais "organizadas", "melhores" ou "honestas" em contraposição ao que aqui temos, que é sinônimo de "desorganização", "bagunça", "corrupção" e "pior".

É daí que concluo que uma base importante dessa associação é o "complexo de vira-lata". O discurso "do que é de fora sempre melhor do que o que existe aqui dentro" é uma constante no discurso do "fanboy" futebolístico brasileiro. Outra característica atinente a esse "novo tipo" de torcedor é a necessidade de se sentir "exclusivo". Não é um fenômeno característico do "fanboy" no mundo todo. Isso se deve claramente ao sentimento individualista e de tentativa de distinção social próprio às nossas classes médias, que apesar de em grande parte formada por trabalhadores assalariados, sempre tiveram uma condição de vida bastante melhor que a ampla maioria dos trabalhadores dado o fato histórico da enorme desigualdade social no país.

É por isso que é um equívoco afirmar que o "fanboy" é o mesmo que o "torcedor modinha", alcunha utilizada para difamar torcedores de ocasião que torcem por equipes que estão, como o próprio nome diz, na moda. Ainda que a relação e o modus operandi de ambos possam ser parecidos em alguns momentos, há importantes distinções entre essas modalidades de torcida.

Já as principais distinções entre o "fanboy" e o torcedor convencional na relação com o clube que se identificam são facilmente perceptíveis. Enquanto o torcedor comum vê no seu clube um ente a quem destina amor, mas que não está alheio a erros, equívocos e problemas; o "fanboy" vê no seu time uma reafirmação de si enquanto indivíduo, tendendo a deificá-lo, alocando-o em um panteão, sendo as críticas, o posicionamento contrário, uma violação gravíssima, uma blasfêmia.

Para finalizar, é preciso pontuar que muitas empresas perceberam que esse tipo não é muito benéfico para suas marcas, já que por serem belicosos acabam por criar um certo grau de antipatia. E essa antipatia pode ser transferida à empresa. Mas como o futebol é um esporte e a relação de paixão é sempre muito presente, será um tanto que difícil para os clubes moderarem o aparecimento desse fenômeno moderno, que é em verdade a consequência de o futebol ter virado um grande negócio, e os clubes, pelo menos os mais ricos deles, empresas transnacionais.

O número de "fanboys" -- ou "fangirls", pelo menos aqui no Brasil, só cresce ao passo que o torcedor comum, ligados às entidades esportivas nacionais em sua maioria, parece diminuir -- ou pelo menos não demonstrar o mesmo interesse. Até porque os times daqui se transformaram em meros exportadores de "pé-de-obra" para essas grandes marcas européias. Mas isso é assunto pra outro texto. O que importa asseverar aqui é que a relação das pessoas com o futebol está a mudar. E para muitos, está mudando para pior.

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