A reunião do Grupo dos 20, isto é, os 19 países mais industrializados
e emergentes do mundo (1) e a União Europeia, que se realizou nos dias
15 e 16 de novembro na cidade australiana de Brisbane, não se limitou em
debater as questões que deveriam contribuir na manutenção da
estabilidade financeira no mundo e no consequente monitoramento do
crescimento da economia global. Na realidade, esta reunião serviu para
transformar o G-20 em um novo conselho permanente internacional
bicéfalo, onde uma “cabeça” reúne os ministros das finanças e
respectivos chefes dos bancos centrais para implementar os principais
objetivos da política neoliberal, notoriamente: a eliminação das
restrições legais e fiscais para o movimento dos capitais; a
implementação dos processos de desregulamentação e de flexibilização no
mercado de trabalho; a realização constante dos processos de
privatização; a progressiva liberalização do comércio global através das
negociações no âmbito da OMC e, sobretudo, com acordos comerciais
bilaterais.
A segunda “cabeça” reuniu apenas 12 chefes de Estados e respectivos
ministros das relações exteriores (EUA, Canadá, Reino Unido, Alemanha,
Austrália, Japão, Coréia do Sul, Indonésia, França, Itália, Turquia e
México) para debater a evolução política nos países industrializados e
emergentes e os elementos geoestratégicos que podem provocar a ruptura
do atual “status quo”. Foi nesse âmbito que ao enfocar o debate sobre a
crise na Síria, na Ucrânia, na Líbia e no Iraque o presidente Obama,
com a ajuda da alemã Ângela Merkel, conseguiu introduzir no G-20 um
clima de moderna guerra fria para penitenciar a Rússia de Vladimir
Putin. Depois, com o suporte do primeiro-ministro do Japão, Shinzo Abe, o
presidente dos EUA conseguiu reafirmar o papel estratégico dos EUA na
complexa gestão dos equilíbrios políticos na região Ásia/Pacífico,
repropondo um “Pivot to Ásia nº2”, para minimizar o papel geoestratégico da China.
Mascara ambiental e crescimento simbólico
É necessário lembrar que na véspera do G-20 o governo dos EUA e em
particular o presidente Barack Obama estavam bastante fragilizados por
três questões: a) não ter pacificado ou pelo menos mantido sob controle
os principais focos de insurgência islâmica no Oriente Médio e na
África; b) não ter conseguido convencer a Rússia em deixar de sustentar
os separatistas ucranianos; c) ter perdido a maioria no Senado que,
durante estes anos, foi o elo de sustentação do seu governo.
Portanto, as excelências da Casa Branca resolveram transformar esse
G-20 em um palanque político para recuperar a confiança dos eleitores
estadunidenses, além de mandar uma clara mensagem aos opositores
republicanos, lembrando-lhes que faltam ainda dois anos ao fim do
mandato de Obama.
Assim, antes da realização do G-20, a questão ambiental se tornou o
principal argumento político do presidente, Barack Obama que, uma semana
antes de desembarcar em Brisbane, viajou até Pequim para assinar com o
seu homologo chinês, Xi Jinping, um vago acordo bilateral, que pretende
promover até 2030 a redução das emissões de Co2 (dióxido de carbono),
uma vez que a China é recordista mundial no consumo de Co2 com 9.900
toneladas, contra as 6.826 dos EUA.
Na prática, esse acordo, juntamente à questão da epidemia do ebola,
foi o gancho para desviar a atenção da opinião pública mundial, enquanto
os elementos bicéfalos do G-20 realizavam suas manobras políticas. Por
exemplo, no momento em que Obama atualizava o projeto geoestratégico “Pivot to Ásia nº2”
para conter e até delimitar o expansionismo econômico e estratégico da
China com o reforço da ASEAN, a introdução de um novo código de conduta
nas disputas territoriais e marítimas, além de convidar a Índia para
atuar com mais força na região Ásia/Pacífico, o primeiro-ministro do
Japão, Shinzo Abe, declarava que o Japão e os EUA destinavam 4,5 bilhões
de dólares ao Green Climate Fund, que as Nações Unidas haviam
criado para ajudar os países mais pobres na luta contra os efeitos
nefastos da poluição atmosférica.
No mesmo tempo, os ministros das finanças presentes nesse G-20
finalizavam um “pacote para o crescimento econômico” com 800 medidas
que, em 2018, devem permitir o aumento de 2,1% do PIB dos países do
G-20. Algo que, segundo os ministros do G-20, deverá permitir à economia
mundial produzir 2 trilhões de dólares a mais, gerando empregos em
todos os lugares do mundo.
Os analistas mais criteriosos admitiram que a maior parte das 800
medidas do G-20 é uma verdadeira “lista de desejos” que todos os
governos ocidentais submetem os seus povos antes das eleições. De fato,
elas já existem, porém se tornam irrealizáveis por causa da complexidade
do modelo neoliberal e sobretudo pela diferenças entre as estruturas
econômicas dos países industrializados. Argumentos, perfeitamente
conhecidos nas chancelarias do Ocidente, que a grande mídia, para
corresponder às orientações da Casa Branca, apresentou como “condição sine qua non” que salvará a humanidade da crise.
Isolar a China?
Em 2001, os analistas do Pentágono prognosticavam que em 2015 os
Estados Unidos estariam em condições de impor, definitivamente, seu
poderio militar à China, o que, em teoria, poderia promover inúmeras
mudanças de ordem geoestratégica na região Ásia/Pacifico. Porém, essa
meta ficou desatualizada em função do progresso alcançado pela indústria
militar chinesa, de forma que os estrategistas do Pentágono enviaram
para a Casa Branca um outro relatório, em que se afirma que somente em
2030 os EUA poderão impor um controle estratégico efetivo sobre a China.
Por isso, a Comissão “US-China Economic and Security Review Commission”,
em outubro desse ano, denunciava no Congresso o aumento do orçamento
militar chinês em 131 bilhões de dólares e a multiplicação das bases
militares no interior da China. Esquecendo que os EUA gastam cerca de 1
trilhão bilhões de dólares em despesas militares (incluindo os fundos
extras e os secretos) e que a presença militar dos EUA no mundo se
mantêm ativa em 576 bases militares (sem considerar as que são colocadas
a disposição pelos “aliados”). Apesar disso, a referida Comissão
recomendava ao Congresso de “aumentar as verbas para a despesa
militar de forma que os EUA poderão reforçar sua presença militar na
região Ásia/Pacifico e, assim, contrabalancear as crescentes capacidades
militares da China”.
A grande mídia não divulgou que Obama concordou com os programas do
Pentágono que, até 2020, prevê concentrar no Pacífico 60% dos navios da
Marinha (U.S. Navy), multiplicando, assim, o potencial bélico do Comando
do Pacífico que, atualmente dispõe de 360.000 soldados, 200 navios e
1500 jatos de guerra entre bombardeiros e caças.
No relatório do Pentágono se pede, também, à Casa Branca promover nos
países membros do ASEAN uma política mais dinâmica, para evitar que o
aumento da presença militar dos EUA na região Ásia/Pacifico seja
criticada, alimentando as reações nacionalistas e anti-estadunidenses.
Consequentemente, Obama, transformou as críticas da Comissão “US-China Economic and Security Review Commission” em
agenda de trabalho para o G-20. Por isso tudo, o presidente dos EUA
estimulou o governo da Índia em fazer sentir sua voz (militar) na região
Ásia/Pacífico, sabendo que entre a China e a Índia – apesar de estarem
juntos nos BRICs — há profundas divergências sobre as definições
territoriais nas regiões da cordilheira do Himalaia.
A reformulação do programa “Pivot to Ásia nº2” e a questão
ambiental foram apresentadas pela grande mídia como um extraordinário
sucesso político e diplomático do presidente Barack Obama, que desta
forma conseguiu recuperar parte da popularidade que perdeu recentemente.
Porém, esse cenário feliz logo mudou quando o ministro da Energia da Índia, Piyush Goyal declarou: “as
necessidades do desenvolvimento industrial da Índia não podem ser
sacrificadas no altar de uma potencial mudança climática que irá a
acontecer daqui a muitos anos. O Ocidente deverá reconhecer que somos
nós, e não eles, que devemos dar uma resposta às necessidades da
pobreza. Por isso a Índia passara a aumentar a extração do carvão de 565
milhões de toneladas para 1 bilhão em 2019”.
As declarações do ministro Piyush Goyal tiveram um imediato efeito
negativo, desmanchando a máscara ambiental que Obama havia construído em
Brisbane durante a reunião dos G-20. De fato, o primeiro-ministro da
Índia, Narendra Modi, não desmentiu seu ministro da Energia, pelo
contrário, sublinhou que o governo indiano realizará, apenas, alguns
projetos com centrais eólicas e solares, dando mais atenção e
financiamento à extração do carvão. Declarações que frustraram as
manobras da Casa Branca e a retomada da popularidade de Obama, do
momento que o carvão é o principal responsável da poluição atmosférica.
A queda de popularidade de Obama se tornou efetiva quando a Casa
Branca e a “grande mídia” se deram conta que o presidente chinês, Xi
Jinping, logo após o G20, devolveu a Barack Obama o golpe do “Pivot to Ásia nº2”,
assinando um importante acordo comercial com a Austrália, que, em
termos políticos, vai enfraquecer a ASEAN e, consequentemente, a
estratégia dos EUA na região Ásia/Pacífico.
De fato, sem ninguém perceber, o primeiro ministro australiano, Tony
Abbott, se reuniu com o homologo chinês, Xi Jinping, para assinar uma
declaração comum para implementar, em 2015, um acordo de livre troca
comercial (Free Trade Agreement – FTA), entre a China e a Austrália. Um
acordo que deverá eliminar em 95% as barreiras alfandegárias dos
produtos australianos destinados à China, dando facilitações não
indiferentes aos investimentos chineses na Austrália. Desta forma as
trocas comerciais entre os dois países deverão passar dos atuais 150
bilhões de dólares para 300. Valores que devem enterrar o aspecto
econômico do Trans-Pacific Partnership - TPP idealizado pelos EUA e que,
na realidade era o instrumento econômico para a afirmação do programa “Pivot to Asianº2”, com o qual Obama pretende obrigar os países da região Ásia/Pacifico em aceitar o aumento da presencia militar dos EUA.
Nova guerra fria contra a Rússia
Para o presidente dos EUA, Barack Obama, e a primeira-ministra da
Alemanha, Ângela Merkel, era de fundamental importância política poder
romper com Putin de forma estrondosa, captando a atenção da “grande
mídia” ocidental e asiática e assim poder denunciar a rebelião no leste
da Ucrânia como artimanha da própria Rússia. Foi nesse âmbito que as
excelências da Casa Branca transformaram o G-20 em um palanque onde o
presidente Obama apareceu para promover o lançamento de uma moderna
“guerra fria”, que antes de chegar a ameaçar a Rússia com represálias
militares, como nos tempos de Ronald Reagan, vai utilizar os meandros
das relações diplomáticas bilaterais e regionais e, sobretudo, as
chantagens financeiras para dobrar o adversário.
Com seu show no G-20, Obama conseguiu demonstrar à maioria
republicana do Congresso que não vai perdoar nada a Putin, reafirmando o
“Conceito Estratégico da Aliança Atlântica (OTAN) para o século XXI”,
que foi elaborado, em 1999, por Madeleine Albright (ex-Secretária de
Estado no governo de Bill Clinton), apresentado o relatório programático
“OTAN 2020: Segurança Assegurada; Compromisso Dinâmico”.
Por outro lado, Obama garantiu à maioria republicana do Congresso que
não massacrará os contribuintes com novos impostos para financiar o
rearmamento do Pentágono. Motivo pelo qual a Casa Branca vai repassar
aos aliados europeus os encargos financeiros do rearmamento da “frente
oriental da OTAN”, dando assim um impulso duplo à identidade estratégica
da OTAN que, desta forma, assume o papel de “trait d’union dans la
politique strategique” (linha de unificação na política estratégica).
Um papel que os generais de Bruxelas - bem monitorados pelos oficiais
superiores do Pentágono - estão cumprindo perfeitamente, explorando as
ameaças do expansionismo russo. Um contexto alarmista que contribui em
manter unidos os países da União Europeia, em um momento de crise aguda,
onde as temáticas econômicas e financeiras ditadas pela Alemanha e o
BCE são consideradas imposições autoritárias e recessivas que contrariam
o crescimento econômico.
De fato, a maior parte dos analistas da “grande imprensa” silencia a
evolução dessa nova guerra fria que o Pentágono e a Casa Branca estão
construindo com a ampliação nos países europeus do Programa de Defesa de
Mísseis Balísticos em Teatro Ativo (Active Layered Theatre Ballistic
Missile Defence Programme) e do Sistema Integrado de Defesa Aérea a Meio
Alcance (Medium Extended Air Defense System – MEADS), que foi planejado
já em 2009 para ser instalado nos EUA, na Alemanha e na Itália com o
objetivo de garantir o funcionamento de uma “estrutura defensiva de
mísseis dos EUA por toda a Europa e o Oriente Médio”. Além disso, o
Pentágono e os chamados “democratas” da Casa Branca concordaram em
manter nas bases aéreas da Bélgica, da Alemanha, da Itália, dos Países
Baixos e da Turquia pelo menos 200 bombas nucleares.
Porém, o elemento mais devassante dessa “moderna guerra fria” é a
subordinação da OTAN aos sistemas estadunidenses de mísseis e a chamada
“ciberguerra” com a qual o Pentágono e a OTAN fingem proteger toda a
Europa de possíveis ataques da Rússia, para transferir suas unidades
militares e suas infraestruturas de espionagem eletrônica ao longo da
fronteira ocidental russa, isto é, do Mar Báltico até o Mar Negro.
Nesse âmbito, o Pentágono conseguiu instalar bases militares
permanentes (aéreas, terrestres e para lançamento de mísseis) nos
territórios da Polônia, da Lituânia, da Hungria, da Bulgária, da Romênia
e logicamente no Kosovo, o pseudo-Estado criado pelos EUA após os
ataques que provocaram a desintegração da Federação Iugoslava. Além
disso, a CIA está continuando a construção dos chamados “sítios negros”
em diferentes territórios dos países europeus ligados à OTAN para
armazenar bombas nucleares estadunidenses. Apesar das negações dos
governos locais, sabe-se que a CIA e o Pentágono já transferiram os
artefatos nucleares para a base de Siauliai na Lituânia, de Amari na
Estônia, de Swidwin na Polônia, de Mihail Kogalniceanu na Romênia e de
Graf Ignatievo e Bezmer na Bulgária e sabe-se lá onde mais!
Se depois consideramos que, desde 2012, os caças F-15 Eagle dos EUA,
estacionados na base aérea de Siauliai, na Lituânia, patrulham
diariamente o espaço aéreo ao longo do litoral russo no Mar Báltico,
enquanto no nordeste da Polônia, também em frente à fronteira com a
Rússia, o governo polonês autorizou a instalação de três baterias de
mísseis antibalísticos dos EUA (Patriot Advanced Capability) e
que a Ucrânia devia ser transformada na principal fortaleza da OTAN no
Leste europeu, se entende porque a Rússia apoiou primeiro o movimento
separatista na Criméia e depois a rebelião no leste da Ucrânia, onde as
populações, ainda por cima, são todas russófilas.
Assim, depois de ter articulado o isolamento da China nesse G-20,
Obama, com a ajuda da Merkel, conseguiu congelar a presença de Putin em
Brisbane, sem, porém, ter obtido dele uma mínima flexão, tanto que após
ter conversado duramente com Ângela Merkel optou voltar para Moscou.
Diante disso, a crise ucraniana permanece tal e qual era antes do G-20,
com um silencioso “status quo” que, de certa forma, legitima a
existência política do movimento separatista e a real impossibilidade
por parte do governo de Kiev de derrotá-lo do ponto de vista militar, ou
de desfazê-lo, introduzindo tardias medidas federativas.
Notas: (1) União Europeia; Grupo 1: Austrália,
Canadá., Arábia Saudita, Estado Unidos; Grupo 2: Índia, Rússia, África
do Sul, Turquia; Grupo 3: Argentina, Brasil, México; Grupo 4: França,
Alemanha, Itália, Reino Unido; Grupo 5: China, Indonésia, Japão, Coreia
do Sul.
Achille Lollo é jornalista italiano, correspondente do Brasil
de Fato na Itália, editor do programa TV “Quadrante Informativo” e
colunista do "Correio da Cidadania"
A publicação deste texto é livre, desde que citada a fonte e o endereço eletrônico da página do Correio da Cidadania.