30/04/2015

Carta a um petista e aos demais esquerdistas democráticos

Olá, caro esquerdista, eu espero que você leia minha carta porque você tem papel importante em tudo que vou relatar: eu o conheci ainda na infância, defendendo o PT e a candidatura de Lula. Todos seus textos, passando por referências importantes como Marilena Chauí, Florestan Fernantes, Paulo Freire e outros símbolos intelectuais do PT eu degustei por sua influência e que em mim muito influenciaram.

 Nesse tempo todo, em que eu passei por grande maturação intelectual e também de cabedal teórico, sempre estive a lê-lo. Quase todas suas análises, ponderadas, me fazem com elas consentir. E quando discordo é sempre de uma maneira a me permitir duvidar da minha discordância e dos meus contra-argumentos.

 Sei que você não é nada adepto dos movimentos comunistas. E que de fato os resultados obtidos nas experiências soviéticas não foram muito animadores. Mas de 2012 pra cá tenho lido muitos marxistas e, claro, a fonte: Marx e Engels. E é quase impossível não concordar com a totalidade de seus escritos e inclusive com as proposições de modo de organização da sociedade.

 Em 2012 arrumei o meu primeiro emprego. Trabalho. Essa coisinha que é a base ontológica do marxismo e que tantos ignoram. Eu encontrei salas super-lotadas; remuneração péssima; falta de infra-estrutura; nenhum contato com o resultado daquilo que eu realizava; e uma burocracia intensa e desmotivante que aos poucos transformava aquilo, uma escola, em um túmulo. De tudo. Até da motivação de um recém graduado.

 Mas continuei a viver nessa situação, apesar de bastante desmotivante — e que não atinge só a categoria dos professores, diga-se. Em 2013 nós tivemos manifestações massivas, no país inteiro, de clara insatisfação com a política e o Estado burguês, como ele é conduzido alheio aos interesses da população. E esse foi o grande mote que suplantou as pautas mais específicas do MPL e que de alguma maneira condensavam tanto os grupos à esquerda quanto os que se diziam de direita e por lá estavam. Apesar da propaganda oficial, apesar do otimismo da burguesia nacional com os grandes eventos esportivos que o país teria e que o colocariam no mapa das potências, o povo ia mal. E explodia em ira. E não só aqui: o movimento quase que seguiu uma tendência de manifestações anti-capitalistas e seus símbolos em várias partes do mundo.

 Chegamos em 2014 e o vi a escrever várias boas postagens a defender as coisas boas do governo do PT e atacar a oposição tucana. Seu texto a elencar os malfeitos tucanos, a crença cega no neoliberalismo e o desmonte da máquina pública foi definitivo para que votasse em Dilma no segundo turno (no primeiro votei em Luciana Genro). Mas naquele período, algumas análises, bem marxistas, me chamavam a atenção: intelectuais do PCB apontavam que ambas as candidaturas defendiam projetos parecidos, com pequenas variações. Em um primeiro momento eu até desdenhei, embora os textos viessem de gente com muito gabarito como Mauro Iasi, pareciam enviesados com aquelas simplificações chulas dignas do PCO. Depois, porém, fui ver que olhar enviesado era o meu: uma vez mais um partido de esquerda democrática comprova o receituário da direita para se manter na situação.

Isso aconteceu por todo o mundo: todos os partidos de esquerda democrática — e que o PSDB também era um exemplo, lembremos! — chafurdaram no que de mais pragmático o pensamento liberal e direitista propõe como modelo de gestão. Inclusive a corrupção, que você bem demonstra ser endêmico nas gestões do Estado burguês.

Voltemos ao marxismo, ao básico: como as relações de produção determinam fundamentalmente a superestrutura na sociedade. Nosso país que ganhou um choque de capitalismo concorrencial e com pesado investimento do governo, tanto incentivando o empreendedorismo de pequenos e médios grupos quanto a verter verba para o consumo, tem hoje uma população extremamente conservadora. E não apenas nos costumes como à época da ditadura: o post do empresário da Geração de Valor (que escroto!) tem mais de 20 mil curtidas e o mesmo número de compartilhamentos. Do ponto de vista de influência, isso aí vai longe. Talvez influencie muito mais que o tal do PIG que a imprensa simpática ao PT vive a atacar.

 O PT ao forçar o desenvolvimento do capitalismo no Brasil criou um monstro que o derrubaria existisse ou não corrupção — que me parece, até pela formação do brasileiro, um aspecto sempre muito periférico (basta ver como o Maluf se elege sempre com ótima votação apesar de ter virado símbolo de corrupção) e só considerável quando em momentos que a água bate nas nádegas, isto é, de crises econômicas.

 Concordo contigo que a esquerda bolchevique é minúscula hoje e em geral repete as mesmas coisas, mesmos discursos, e tem enorme dificuldade de interpretar e propor diante de fatos novos. Mas se olharmos para bons historiadores marxistas, economistas marxianos e toda a riquíssima produção comunista-leninista-marxista, há muita coisa boa e críticas válidas e contundentes pra atualidade. Uma delas, a que me parece mais verossímil, é que uma vez dentro do Estado burguês e tendo como seu senhor o lucro, a esquerda social-democrática não tem vez e vai no máximo se lambuzar como os que naturalmente pertencem a esse meio.

 Eu não consigo conceber um mundo melhor dentro de uma sociedade capitalista. No Brasil ou na Alemanha, as pessoas, a maioria delas, está estupidificada. Moralmente degradantes (me refiro como veem a vida e não o que fazem com ela) e há infelicidade geral e irrestrita — tanto que as próprias classes médias têm, lá e cá, defendido soluções por vezes autoritárias. Uma sociedade que qualifica as pessoas pelo que elas têm, por padrões, é moralmente doentia e não merece outra coisa que não sua extinção. E a tentativa da esquerda democrática de tentar corrigir o incorrigível me parece uma das maiores perdas de tempo, pois sempre resulta nas mesmas coisas. E posteriormente vemos os mesmos choramingos: erraram, deixaram o trem passar, podiam ter feito isso e não fizeram e tudo o mais. Tolice.

Por isso concluo que se o movimento comunista hoje parece deficitário, é um trabalho menos hercúleo e de perspectivas melhores tentar aprumá-lo do que perder tempo criando grupo pra reformar o que já está podre na essência. Foi por isso que resolvi me juntar ao PCB. A democracia liberal burguesa pra mim está morta e sepultada. E não será Flavio Dino ou Luciana Genro que vai resgatá-la — mais um novo Messias pra esquerda se iludir e depois se decepcionar de forma amarga, mas não sem fazer com isso a direita recrudescer.


Teça considerações.

Cordialmente,

Wanderson Marçal.

28/04/2015

Futebol, por que ainda o amo?

(Não são só números) Há algum tempo eu vivo um dilema que tem me deixado angustiado: por que eu ainda gosto de futebol? Parece uma pergunta boba, trivial, e para o leitor que não é apaixonado pelo ludopédio, de fácil resolução. É só deixar de acompanhar e pronto, sugeriria rapidamente o mais pragmático. Sem angústia? Não pra quem cresceu a amar esse esporte e que está encravada em sua formação.

Pergunto-me por que me importar com um esporte cujo resultado é quase sempre decidido fora do campo. E eu não me refiro a supostos roubos de arbitragens. E sim a disparidade econômica que assola os gramados mundialmente. E aqui vai um pouco da minha história de vida e da minha relação com o futebol para fazer o leitor compreender melhor minha angústia:

Eu nasci numa família apaixonada pelo jogo. Vivi até 6 anos na casa dos meus avós, na qual alguns tios, adolescentes, se dividiam na paixão pelo São Paulo e pelo Corinthians. Era 1997, final do campeonato paulista, quando decidi tomar partido. Já naquela época eu conseguia perceber o Corinthians como um time mais popular. A vitória com gol do André Luiz com colaboração do calcanhar do Rogério Ceni me fez passar a ter simpatia por aquele clube, que vencera ali o então clube mais vencedor dos últimos anos do futebol nacional, o que eu não sabia, mas que a postura arrogante dos meus tios são-paulinos deixava bem claro. rs

Mas foi só 98 que eu comecei a acompanhar futebol de forma mais autônoma. Foi naquele ano duas das minhas maiores tristezas com o fabuloso esporte: a derrota do Corinthians para o São Paulo na final do campeonato paulista, com direito a exibição de gala de Raí; e a derrota para a França na final do mundial. Foi ali que eu percebi que o futebol muito mais tirava do que dava.

No entanto, nos anos seguintes, o time que havia escolhido para torcer ganhou bastante e deixou a mim e meus parentes corintianos muito orgulhosos. Só que duas derrotas marcaram bastante: ambas para o Palmeiras nas Libertadores de 1999 e 2000. Vencer e perder parecia mesmo uma rotina do futebol, o que o fazia mais e mais apaixonante para um garoto que não tinha nem sequer uma década de vida, ainda. Aquilo era realmente imprevisível.

O tempo foi passando e junto ao Corinthians eu somei alguns namoricos internacionais, todos bem moderados: A Internazionale e o Madrid, por conta do meu ídolo de infância no futebol, o Ronaldo (o outro havia sido o... Rubinho! rs); o Bayern por conta de sempre chegar nas decisões européias e por ser do país cuja seleção tinha o uniforme parecido com o do Corinthians (aliás, que merda foi essa da Mannschaft adotar esse uniforme todo branco, né?); e o Chelsea. Muitas torcidas, mas o clube que eu amava, mesmo, era o coringão.

Foi assim até 2006 quando o Tevez saiu. Ali eu percebi que eu era apenas um bobo, um idiota. Primeiro porque idolatrava um cara que nem teve a dignidade de dizer tchau. Depois porque gostava de um clube que a bagunça interna era tão grande -- e só ali fui perceber quando conheci os meandros do Parque São Jorge --, que havia quem torcesse contra apenas por motivações políticas. Gente de dentro do próprio clube.

Entrei em crise com o futebol.

Mas a bela Copa de 2006 me deixou algumas sementes que começariam a brotar:



 Eu me identifiquei muito com a não tão boa, mas muito aguerrida seleção da Alemanha na Copa de 2006. Embora tenha torcido contra ela no jogo das quartas contra a Argentina (como me arrependo disso...), era fascinante ver aquela equipe jogar. Um jogador em especial, muito jovem, passou a chamar minha atenção: Bastian Schweinsteiger. Que tinha tantas espinhas quanto eu, aliás. Foram dois pulos dali para minha simpatia pelo FC Bayern virar amor. Um amor que substituía outro, como acontece em relacionamentos amorosos.

É verdade que minha relação com o futebol ficou mais sóbria e menos passional. Eu nunca chorei por uma derrota bávara. E nem nunca saí pela rua gritando quando vencia. Talvez por medo de parecer ridículo? Talvez. Mas não importa.

E o Bayern sempre venceu muito. Não se discute que é o maior clube da Alemanha e um dos maiores do mundo. Mas apesar de continuar a vencer, nunca foi tão simples: ganhava uma Bundesliga aqui, outra em dois anos; caía nas quartas da Champions... Lembrava-me as campanhas do Corinthians no final dos anos 90: vencedor, mas não avassalador.

Foi assim até 2013. Hoje o clube ganha sempre. Independentemente do que aconteça. Agora mesmo no fim de semana fomos tricampeões alemães com 4 rodadas de antecedência (em um campeonato de 34 rodadas, isso é muito...), somando o 25º título enquanto o segundo colocado, o também bávaro Nürnberg, tem 9. Só o Schweinsteiger, que acaba de completar 30 anos, 13 de profissional do Bayern, já tem 8 Bundesligas. O mesmo número que um dos nossos grandes rivais atuais, o Borussia Dortmund.

Alguns alegam que é apenas uma fase de uma equipe histórica. Pode ser. Mas o que temos visto na Espanha, com duas equipes de poderio financeiro parecido com o do Bayern, é que não é bem assim: o Barcelona histórico que ganhou tudo com Guardiola e parecia ter seus recordes guardados por décadas (assim como foi o Bayern da década de 70 com Beckenbauer, Gerd Müller, Breitner e outros craques) já vê a equipe do multimilionário ataque MSN bater alguns de seus números. O Real Madrid com vários jogadores abaixo do potencial, mesmo assim, fazem semifinal novamente de Champions League e vão disputar o espanhol uma vez mais com o Barcelona e muito à frente do Atletico de Madrid, que mesmo com muito dinheiro do governo pouco popular do Azerbaijão, não consegue fazer frente aos dois rivais. Para piorar, o Karl-Heinz Rummenigge, CEO do Bayern, disse que ficou feliz com a derrota do Atleti porque eles praticariam anti-futebol. Mas tem como competir com Madrid e Barcelona jogando futebol e tendo menos de um terço do orçamento? Eu gostaria que o Rummenigge respondesse. Sinceramente.

Clubes são tratados como empresas e o futebol virou negócio. E dos gordos. E faz tempo. Quem paga mais, quem tem mais, quase sempre vai ganhar. Mesmo o futebol sendo incrivelmente generoso com times pobres e fracos, equipes como Madrid, Barcelona e Bayern, super-seleções supranacionais, atingem um nível técnico que é raro vê-los falhar quando enfrentam mesmo times muito bons.

E por acaso hoje aconteceu: o Bayern foi eliminado em plena Allianz Arena, em Munique, pelo Borussia Dortmund, que é oitavo no campeonato alemão com 37 pontos a menos que o Gigante bávaro. O BVB -- como é conhecido na Alemanha -- tem 39 pontos, mas hoje, nos pênaltis, conseguiu nos eliminar e ir à final. Mas não sem um toque de imprevisibilidade: parecia morto até os 70 minutos de jogo, o Bayern tirou o pé já pensando nas semis da Champions e os jogadores que entraram, sobretudo o Robben voltando de lesão e que se lesionou novamente, não corresponderam e o time conseguiu empatar e quase virar antes do fim dos 90 minutos. Ainda contou com um erro de arbitragem. Ou seja: em condições normais, o Bayern teria vencido. Assim como em condições normais vencerá a próxima Bundesliga e a Copa da Alemanha, a Deutscher Pokal.

Onde está o prazer em acompanhar algo que a diferença é tão grande? Pra complementar, os clubes, sobretudo os mais ricos, os grandes, cada vez mais exploram seu torcedor a fim de alcançar rendas ainda mais absurdamente gigantescas (sugiro a leitura do texto do Mauro Cezar Pereira na ESPN: clubes gastam mal e exploram torcedor), afastando o povo dos estádios. Tudo para que os envolvidos ganhem ainda mais fortunas, que os jogadores ganhem salários ainda mais fora da realidade de 98% da população mundial.

É um desaforo, um tapa na cara de trabalhadores como nós.

Não obstante, existe toda uma linguagem de idolatria para com jogadores de futebol que merece mesmo uma outra postagem e muito mais que isso: intensa crítica e reflexão. Viraram ídolos, mártires, exemplos. Isso em uma sociedade que cada vez mais carece de educação, saúde. Em termos práticos: professores e médicos. E que cada vez mais são vistos com desdém.

Eu estou em crise com o futebol. De novo. E confesso que escrever esse texto me deixa incrivelmente menos angustiado, ainda que a angústia ainda ali permaneça e ocorrerá toda vez que o Bayern entrar em campo, eu torcer por ele e perceber que aquele gol vale não sei quantos milhões que irá, aos poucos, separando-o dos demais e matando o pouco que resta de esporte nesse jogo cada vez mais capitalista.

Eu queria poder bradar orgulhosamente que meu time tem quase três vezes mais títulos da liga nacional que o segundo colocado, que temos 5 Champions League e o Borussia Dortmund apenas uma, que o Bayern é tricampeão alemão seguidamente e dando um baile nos demais. Mas você olha nas contas, e lá está: o clube gasta quase quatro vez mais que o Dortmund. Como competir? E se se olha para ligas como a da Espanha e da Itália, a diferença é ainda maior.

Não é difícil ganhar assim. Mas também não é fácil torcer.

16/04/2015

De onde vem o conservadorismo?


 Texto Mauro Iasi - Partido Comunista Brasileiro

''Atrás da aparente beleza, estão os assassinos em massa,
a abolição da dignidade, os campos de trabalho forçado, a rejeição de toda a noção de liberdade e fraternidade. (…) [O comunista] é aparentemente inofensivo, será o seu mais querido amigo, o mais sincero, o mais leal… até o dia em que ele o assassinará pelas costas.”

(O GORILA, folheto anticomunista distribuído no interior das Forças Armadas como preparação para o Golpe de 1964)

Há um certo espanto com as recentes manifestações de direita no Brasil, como se fossem algo fora do lugar e do tempo, resquícios de um tempo obscuro que se esperava superado. Por outro lado, espantam-se os que crêem que tal fenômeno é absolutamente novo – daí os epítetos tais como “nova direita”, “onda conservadora” e outros. Acreditamos que o conservadorismo que se apresenta na ação política de direita não é algo do passado que se apresenta anacronicamente no cenário de uma democracia, nem algo novo que brota do nada.

O conservadorismo sempre esteve por aqui, forte e persistente. O fato é que não foi enfrentado como deveria e nos cabe perguntar: por que?

CONSERVADORISMO E LUTA DE CLASSES


O conservadorismo não pode ser entendido em si mesmo, ele é expressão de algo mais profundo que o determina. Estamos convencidos que ele é uma expressão da luta de classes, isto é, que manifesta em sua aparência a dinâmica de luta entre interesses antagônicos que formam a sociabilidade burguesa. Nesta direção é importante que comecemos por delinear o cenário no qual o conservadorismo se apresenta.

O impacto da ação política de direita espanta aqueles que julgavam que as classes sociais não eram mais categorias que poderiam explicar a sociedade contemporânea. De certa forma, prevaleceu uma estratégia política que orientou de forma determinante a ação política dos trabalhadores que esperava amenizar ou contornar a luta de classes para que fosse possível um conjunto de reformas de baixa intensidade no longo prazo.

Esta estratégia, denominada de Democrática e Popular, se fundamenta na convicção que a crise da autocracia burguesa permitiria superar uma característica histórica de nossa formação social, isto é, seu caráter “prussiano”. O Brasil era uma sociedade com um Estado forte e uma sociedade civil fraca, assim o fortalecimento da “sociedade civil” geraria um cenário no qual a disputa de hegemonia favoreceria às classes trabalhadoras, diminuindo o espaço próprio da direta e favorecendo a política de esquerda.

Não foi o que ocorreu. A estratégia burguesa de transição pelo alto, controlada e segura, venceu. Não porque não se tenha fortalecido a sociedade civil burguesa e o Brasil não tenha se “ocidentalizado” nos termos gramscianos, mas justamente pelo fato do fortalecimento da sociedade civil burguesa ter acabado por criar um quadro no qual a hegemonia burguesa se consolidou, diminuindo e não ampliando o espaço para a política de esquerda.

Há aqui duas incompreensões graves no que diz respeito ao conceito de hegemonia e, por conseguinte, da compreensão do caráter do Estado. Prevaleceu uma visão mecânica que associou a autocracia ao uso da força e a democracia ao consenso. Desta forma dicotômica, ao optar pela disputa de hegemonia supostamente favorecida pelo fortalecimento da sociedade civil burguesa, retira-se da paleta de opções políticas o uso da força – seja da esquerda, abandonando a perspectiva de ruptura revolucionária, seja pela direita, com sua tradicional tendência golpista que interrompe os processos institucionais.

A maneira de contornar a luta de classes e tornar possível as reformas de longo prazo seria o pacto social. Isto é, deixar a burguesia ganhar seus lucros e criar as condições favoráveis para seus negócios enquanto, pouco a pouco, gotejam melhorias pontuais para os mais pobres. Assim a burguesia não teria razão para interromper o processo político e a disputa seria desviada para o terreno que interessaria aos trabalhadores: a disputa eleitoral e o reformismo de baixa intensidade gradualista que seria aceito pelas classes dominantes uma vez que não se trata de nenhuma mudança socialista, mas de buscar uma maior justiça social.

Neste cenário ideal a direita e suas manifestações mais gritantes se isolariam, o conservadorismo iria cedendo espaço para uma consciência social cada vez mais progressista e viveríamos felizes para sempre.

A primeira incompreensão grave é que a hegemonia de uma classe social não se define, pelo menos como Gramsci pensava a questão, pela mera disputa das consciências sociais e da legitimidade, mas tem suas raízes nas relações sociais de produção e de propriedade determinantes numa certa época histórica. A hegemonia nasce da fábrica, dizia o comunista italiano. Querer reverter a direção moral de uma sociedade mantendo as relações sociais de produção e formas de propriedade inalterada é uma tarefa impossível.

Da mesma forma é impossível separar os dois elementos constitutivos do Estado, isto é, a coerção e a busca do consenso. Dizia Gramsci:
“O exercício “normal” da hegemonia, no terreno tornado clássico do regime parlamentar, caracteriza-se pela combinação da força e do consenso, que se equilibram de modo variado, sem que a força suplante muito o consenso, mas ao contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da maioria”
(Antonio Gramsci, Cadernos do Cárcere, v. III, 2007, p. 95)

Vejam que combinados os elementos do par dialético força/consentimento, o Estado burguês precisa apresentar sua dominação de classe como expressão de um interesse geral, e não de seus egoístas interesses particulares. Esta é a função da ideologia, mas como isso é possível?

 Como já diziam Marx e Engels na Ideologia alemã, as ideias dominantes em uma soctiedade são as ideias das classes dominantes, mas estas só são dominantes porque expressam no campo das ideias as relações que fazem de uma classe a classe dominante. Tal aproximação teórica é essencial à compreensão do nosso tema.

O conservadorismo não é um desvio cognitivo ou moral, não é fruto de uma educação mal feita ou de preconceitos vazios de significado. O conservadorismo é uma das expressões da consciência reificada, nos termos de Lukács, ou do chamado senso comum, nas palavras de Gramsci, isto é, é uma expresso da consciência imediata que prevalece em uma certa sociedade e que manifesta, ainda que de forma desordenada e bizarra, os valores determinantes que tem por fundamento as relações sociais determinantes.

Neste sentido, o conservadorismo não veio de lugar nenhum, sempre esteve ali nas relações que constituem o cotidiano e na consciência imediata. As características desta consciência imediata já foram delineadas por Lukács e se centram nos seguintes aspectos:

a) imediaticidade, o que significa que é uma consciência que se forma nas relações imediatas do ser social com as coisas e pessoas próximas, nos contextos presenciais e que tem por horizonte de ação o tempo presente;

b) heterogeneidade, o que implica que as diferentes esferas de ação da pessoa no trabalho, na vida afetiva, nos vínculos com o sagrado (o que inclui o futebol, além da religião), na adesão à valores morais, ganham autonomia e coexistem lado a lado sem a exigência de coerência entre os elementos que conformam um determinado modo de vida e uma correspondente concepção ideal de mundo;

c) superficialidade extensiva, ou ultrageneralização, mecanismo pelo qual a experiência imediata é estendida e universalizada de contextos particulares para generalizações carentes de mediações, o que leva ao preconceito como forma imediata do pensamento no cotidiano.

Esta consciência imediata forma uma senso comum, bizarro e ocasional, isto é, formado por elementos dispares e heterogêneos relativos aos diferentes grupos ou segmentos sociais que o indivíduo entra em contato em sua vida, na família, nos diversos grupos, no trabalho, na vida pública e outras esferas.

Ainda que todo senso comum expresse as relações sociais determinantes e portanto valores da ordem burguesa, nem todo senso comum é conservador. Faz parte do senso comum, até pela característica da imediaticidade, a reação a uma situação vivida como injusta ou intolerável, a necessidade da solidariedade entre os que vivem as mesmas situações, o que constitui um núcleo saudável do senso comum ou o bom senso. Entretanto, tais características também são cruzadas pela luta de classes, isto é, podem ser elementos basilares da constituição de uma consciência de classe dos trabalhadores ou de formação de uma ação política conservadora.

Neste ponto as duas dimensões da análise se encontram. A estratégia gradualista e o governo de pacto social que dela deriva, desarmam a consciência de classe forjada nas décadas anteriores e criam uma situação na qual a consciência dos trabalhadores reverte-se novamente em alienação, em serialidade, fortalecendo o senso comum. A consciência de classe dos trabalhadores pressupõe uma clara definição do inimigo, como dizia Marx, para que os trabalhadores se vejam como uma classe que pode representar uma alternativa universal para o sociedade, outra classe tem que se expressar como um empecilho universal, um entrave que precisa ser superado; ou como dizia Freud, só é possível manter alguns em união quando se dirige o ódio para outros.

O pacto social e a política da pequena burguesia procura diluir as diferenciações de classe, em outras coisas, com a enganosa ideia de nação. Ocorre que a consciência de classe não é uma naturalidade sociológica, de forma que cada classe tem a consciência que lhe corresponde, mas ela se forma na ação política desta classe e, em grande medida, pala forma política que assume sua vanguarda. Uma ação política classista gera um forte sentimento de pertencimento e identidade de classe, uma política diluída de cidadãos, consumidores, parceiros, e outras gera indiferenciação, permitindo que se imponha a inércia da visão de mundo própria da sociedade dos indivíduos em livre concorrência.

Desarmada a classe trabalhadora de sua consciência de classe, a luta de classes que se esperava contornar e que é impossível de evitar, se manifesta. É fácil identificar os setores de direita que operam no jogo político, mas não é tão simples entender por que meios logram a adesão de segmentos sociais diversos.

A iniciativa política e o trabalho ideológico da direita é facilitado por um mecanismo que Althusser identificava como “reconhecimento”, isto é, a ideologia só pode ser efetiva se o valor ideológico encontrar na consciência imediata algo que produza um reconhecimento e assujeite a pessoa a determinadas práticas. Neste ponto, o funcionamento da ideologia é preciso. As relações sociais interiorizadas na forma de valores que constituem uma determinada visão de mundo são apresentada à estes valores agora na forma do discurso ideológico.

Ocorre que o discurso não é uma mera reapresentação do conteúdo mais substantivo das relações sociais internalizadas, ele o conforma de uma determinada maneira e com certa intencionalidade, produzindo um efeito político extremamente útil à dominação. Certas palavras chaves, “significantes mestres” nos termos de Lacan, ordenam a serie de palavras que são veículos de valores dando consistência a uma determinada visão de mundo orientada ideologicamente.

Isto significa, em última instância, algo muito simples. A disputa de hegemonia, que implica também, mas não somente, na disputa das consciências, é uma luta de classes e não um debate sobre valores. Só se afirma uma visão de mundo, numa sociedade de classes, contra outra visão de mundo. Neste sentido a meta do consenso nos quadros do Estado burguês é ela mesma ideológica.

No inevitável acirramento da luta de classes, os governistas do pacto social ficam à deriva porque não esperavam ter que enfrentar a direita neste cenário na qual ela, ao contrario dos gradualistas, consegue dialogar com a consciência imediata das massas. E o fazem operando eficientemente os elementos do conservadorismo deixado inalterado.

CONSERVADORISMO E FASCISMO


Há um certo exagero conceitual na tentativa de identificar este conservadorismo como fascista. Mas, nos seria útil identificar nesta ideologia elementos que correspondem ao discurso conservador no intuito de compreender sob que significantes o conservadorismo abre o dialogo com a consciência imediata.

Leandro Konder em seu livro Introdução ao fascismo (São Paulo, Expressão Popular, 2009) nos dá um bom caminho nesta direção. Primeiro ressaltemos que o fascismo, tal como Togliatti e outros definiram, é uma expressão política da pequena burguesia que serve aos interesses do grande capital monopolista/financeiro e que logra uma apoio de massas nas classes trabalhadoras. Ideologicamente ele opera necessariamente apagando suas pegadas relativas ao seu pertencimento de classe, e para tanto é essencial a ideia de Nação, de onde deriva a primeira característica do pensamento conservador: ele é extremadamente nacionalista.

A esquerda sempre flertou com a ideia de nação, mas ela é uma patrimônio da direita e uma propriedade intelectual da pequena burguesia, que por ser uma classe de transição (não é trabalhadora nem burguesa) se crê acima dos interesses de classe, sendo a legitima detentora do interesse nacional. Não cabe aqui avançar na discussão se este valor pode ou não servir a propósitos de esquerda – já serviram. Sempre achei temerário e as consequências não costumam ser boas. O que nos interessa diretamente aqui nesta reflexão é que a direita, de novo, manipula com eficiência esta ideia vaga que a nação precisa ser defendida contra seus adversários e sai às ruas com as cores da CBF.

Outro aspecto importante a ser destacado na ideologia fascista, que aqui nos serve apenas de parâmetro de análise, é o pragmatismo imediatista. Derivado de um quadro de referencia imediato, de problemas ou contradições que lhe afetam de forma direta, o fascista assim como todo conservador quer uma solução. Não há história, assim como inexistem determinações fora do campo do visível.

Desta forma o pensamento conservador não se preocupa se antes falava uma coisa e agora fala outra, pois não conexão entre estas dimensões, só existe o agora, o presentismo exacerbado. Dane-se o passado e não me interessa as consequências disso para o futuro, me interessa o gozo presente, o êxtase.

Tal característica remete a outras duas próprias do pensamento conservador: a preponderância das paixões e o irracionalismo. Como não existem determinações mais profundas além da aparência dos fenômenos, assim como não existe história que articule formas passadas às presentes, tudo se resume a reação instintiva e animal, as paixões. Daí que o conservador é por natureza violento e irracional.
Um fato ilustra bem isso. Um fotógrafo mineiro foi agredido na manifestação da direita porque se parecia com Lula. Vejam, um ser racional não agrediria alguém por querer participar de ato público, mas um ser irracional não se permite perguntar algo ainda mais elementar: o que estaria fazendo o ex-presidente da República disfarçado de repórter num ato da direita?
Tentar buscar algum tipo de racionalidade na direita conservadora (uma redundância, não é?) é tarefa inútil. Assim como a Globo tentando derivar dos atos uma pauta, quando se via claramente um exercício sistemático de ódio; ou ainda a presidente Dilma e seus perdidos ministros reafirmando questão abertas ao dialogo com a malta que pede sua cabeça.

Há um aspecto que deriva, tanto do nacionalismo, como do imediatismo e do irracionalismo apaixonado: o preconceito. Todo fascista e a maioria dos conservadores tem que desembocar, mais cedo ou mais tarde, em algum tipo de supremacia que justifique sua ação. Aqui ganha uma densidade visível a operação do princípio freudiano segundo o qual o que permite a solidificação da identidade grupal é a transferência do ódio para algo ou alguém fora do grupo. É preciso criar um estigma, um preconceito, para que a paixão violenta se expresse.

Não basta a oposição a um governo, um debate sobre alternativas de sociedade. Isto tudo é racional demais. É preciso colar algo mais atávico, afetivo, que mobilize paixões irracionais. Daí a funcionalidade dos estigmas, e entre eles do anticomunismo, ainda que o alvo da raiva não seja, nem de longe, algo parecido com um alternativa comunista. Desta maneira eu posso atacar, pedir o impedimento, xingar, desejar matar e acusar sem entender o porquê. Simplesmente porque é comunista (ou judeu, ou negro, ou homossexual, etc…).

Em função da grande carga afetiva mobilizada na opção conservadora, ela exige e pressupõe a repressão da sexualidade, como já analisou brilhantemente Willian Reich. Por isso o fascista e o conservador é um moralista. O moralismo e suas manifestações associadas, como a intransigente defesa da família, por exemplo, são um elemento constante no discurso conservador, mas aqui também é necessário a alteridade, um outro que ameace a ordem e a harmonia do padrão moral, daí que não nos espanta que o discurso conservador associe o nacionalismo, a irracionalidade, o moralismo com a homofobia.

Por fim, o fascismo sempre foi um crítico da democracia e do regime parlamentar e defendeu a solução autoritária. O conservadorismo é sempre elitista. A noção de supremacia, seja racial ou outra qualquer, age aqui como a convicção que o governo deve ser entregue a uma elite capaz, forte e moralmente firme, para conduzir a sociedade na direção correta. No fundo o autoritarismo é uma consequência de tudo o que foi dito, pois aquele que clama contra o desvio moral, o risco da corrupção, na verdade está clamando por controle, inclusive contra seus próprios impulsos. Todo conservador é um sádico.

O que nos salta aos olhos é que estes elementos do discurso ideológico conservador produz a função do reconhecimento com os elementos da consciência imediata reificada, com o senso comum. Por outro lado, a consciência de classe se constitui num tortuoso processo de rompimento com o senso comum, ainda que sempre partindo dele.

A única maneira de enfrentar o discurso e a prática política da direita é revelando sua particularidade e a natureza de seus interesses de classe. No entanto esta não é uma mera operação racional, em grande medida a luta de classes exige que a transição da alienação para a consciência de classe também opere com mecanismos subjetivos, de identidade de classe, de formação de uma nova subjetividade, de transformação cultural. O fascismo só tem espaço para crescer na derrota da esquerda.

Contra esta ofensiva da direita, que era inevitável, seria necessário agora uma classe trabalhadora que constituída enquanto classe e portadora de valores e uma visão de mundo revolucionária, que visse na ameaça fascista a necessidade de sua maior unidade. Na ausência desta consciência de classe, na desarticulação da visão de mundo de esquerda que poderia ordenar o senso comum numa direção diferente, os membros das classes trabalhadoras são devolvidos à serialidade e viram presas do discurso conservador.

Enganam-se os que querem restringir o pensamento conservador a uma categoria de eleitores, ou apenas aos segmentos médios. O grande risco é que a base de massas para alternativas conservadoras (não creio que no momento possam ser identificadas como fascistas) não pode ser somente as chamadas “classes médias”, ainda que sejam estas a caixa de ressonância por natureza da proposta conservadora. O alvo é outro. São os trabalhadores. Por isso o abandono das demandas próprias de nossa classe pelo governo de pacto social é o caminho mais rápido para dotar a alternativa de direita da base social que ela precisa.

Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

14/04/2015

Números desnudam teses pós-modernas. Ou: É a economia, estúpido!

 Em um importantíssimo trabalho de pesquisa em campo desenvolvido pelo Departamento de Ciência Política da UFMG, sobre traços dos manifestantes que foram à rua se manifestar no dia 12 último em Belo Horizonte, podemos perceber uma vez mais a derrocada das teses pós-modernas na tentativa de explicar as tendências conservadoras e liberais nos discursos contra o governo Dilma nos protestos últimos. A falácia da esquerda democrática e de todos aqueles que se deixaram perder em discursos especifistas, não-marxistas, inclusive importantes e influentes nomes da academia, como o filósofo e atual titular da Pasta da Educação Renato Janine Ribeiro, aqui são alocados em xeque.

Primeiros números já desmontam motes oficiais tanto do coxinhismo quanto do petralhismo:





 Observa-se aqui já de cara que apenas 56% (a margem de erro é de quase 5 pontos para mais ou para menos) têm ensino superior ou pós-graduação. É um número elevado quando se pensa na totalidade da população brasileira, claro, mas bem aquém quando se assevera que trata-se de um movimento de elite. Fica bem evidente que há uma classe média tradicional, alta; mas também gente oriunda da classe C, a nova classe média, cuja adesão aos cursos superiores ainda é baixa.

Em contrapartida a pesquisa desnuda também a afirmação de que o principal foco dos atos é a corrupção, isto é, uma crítica meramente na forma da condução quanto à lisura dos bens públicos: apenas um terço dos que lá participaram acreditam que é o principal foco. Um número muito próximo aos que se dizem simpáticos ideologicamente com o PSDB, legenda da oposição que por oferecer o mesmo receituário neoliberal adotado por Dilma e pelo PT se concentrou nesse tipo de crítica.

E mais: ainda que seja uma camada que rejeite fortemente o PT, os números deixam bem claro que é uma rejeição específica de como a vida lhes é sentida: apenas 39% crê que a vida tenha piorado nos últimos 10 anos e 78% acha que o Brasil piorou. Essa diferença acentuada entre a percepção individual e coletiva é facilmente explicável quando se observa o quadro de vida nas grandes cidades no Brasil: embora com consumo maior e expansão econômica, a qualidade de vida, com o trânsito e a privatização de espaços públicos, piorou tal qual os índices de violência -- cuja classe média, não à toa, é a mais sensível ao discurso do medo, já que com mais propriedade, porém não totalmente separada da realidade que lhe atormenta, se enfia atrás de muros -- e nem sempre só simbólicos.

 Outro ponto importante aqui é notar que boa parte se municiou por meio da internet. E isso explica um pouco a autonomia e a conseguinte não completa adesão das pessoas em relação aos motes defendidos por grupos de mídia como as Organizações Globo, que tentaram direcionar o ato na defesa do impeachment da presidente e na crítica moralista da corrupção.

Números seguintes mostram que o maior problema é a economia

 
Nos valores demonstrados no segundo slide, a questão de que a crítica ao governo se percebe pela condução da economia fica bastante evidente: mais de 90,6% acha que o PT faz um grande mal ao Brasil e 89,5% acredita que o governo cobra muitos impostos. É um número altíssimo que bem descreve a situação dos setores médios hoje no Brasil percebida a partir dos mesmos: carga tributária relativamente alta, mas sem acesso aos serviços públicos, o que torna a manutenção do padrão de vida um tanto mais dificultoso -- sobretudo quando a economia não cresce como nos anos últimos. Outro número que chama a atenção é a porcentagem dos que defendem a diminuição da maioridade penal, na casa dos 80%, e que reflete a sensação do medo sobre a qual citei anteriormente.

Nos demais pontos verifica-se um certo equilíbrio entre discursos liberais, conservadores e progressistas: a maioria rejeita que mulheres, negros e gays tenham direitos demais¹ e que a pena de morte deva ser aplicada. 25% não concordam que as cotas raciais são um erro e que devem ser encerradas. Um grau de aprovação bastante alto para uma manifestação com tom direitista e conservador, concordemos. Mais de 30% são favoráveis à retirada de símbolos religiosos de prédios públicos e a maioria não concorda que família é apenas o núcleo formado por um homem e uma mulher: um número que também destoa de uma manifestação quando estereotipada só pelas chamadas com apelo conservador.

 Enfim: é possível notar um amálgama muito grande de discursos, por vezes contraditórios e até totalmente antagônicos. mas que se interseccionam na percepção da vida enquanto aspecto econômico e o que a ele é oriundo mais claramente. Os discursos por direitos, costumes e tudo o mais, ainda que sejam eventualmente atacados por alguns grupos, ficam evidentemente relegados a segundo plano, demonstrando, uma vez mais, que a insatisfação da classe média que foi às ruas tem nome e sobrenome -- e é o modelo econômico de gestão adotado.

 E ainda que os dados digam respeito apenas a BH, as variações com os públicos de outras metrópoles que participaram dos atos não parece ser tão distinto assim: vide o fato de políticos serem vaiados em São Paulo e existir alguma rejeição às pautas autoritárias bem como a inclusão de grupos favoráveis a pautas LGBTs, feministas etc. Todo o resto, como a comparação com Cuba e Venezuela, parece mais ser um caldo do chorume direitista nas redes e nos meios de comunicação burgueses, em um acúmulo de ignorância, preconceito e ideologia do contra, já que o governo do PT é associado à esquerda embora faça governo de centro-direita.


1 - Diferentemente do que publiquei ontem, baseado em relato de pesquisadora envolvida, não procede a informação de que mais de 80% acham que minorias têm direito em excesso. Pelo contrário: a maioria discorda dessa afirmação, o que deixa clarividente não ser um grupo tão tacanho quanto aos costumes, uma tese que eu levantei durante muito tempo, mas que diante dessa informação precipitada e equivocada que me passaram eu acabei por aderir ontem.






13/04/2015

Manifestação em BH: para 80% minorias têm direitos demais

Ontem um grupo de pesquisadores da UFMG, entre os quais a cientista política Mara Telles, foi à manifestação em BH que a Globo dizia ser "Contra a Dilma, a corrupção e o PT'' para compreender o perfil ideológico dos que lá estavam. Após análise inicial dos números da pesquisa, a descoberta foi aterradora: os coxinhas direitosos também que lá estavam são contra mulheres, negros, pobres, homossexuais e nordestinos.

A pesquisadora ponderou hoje cedo sobre:

''Os principais resultados demonstram que a despeito de apoiarem as manifestações públicas e serem contrários ao fechamento do Congresso, os que foram às ruas ontem em BH são, em geral: eleitores de Aécio Neves, apoiadores da Pena de Morte, afirmam que os cidadãos honestos devem portar arma, consideram que os pobres têm muito privilégio no Brasil, são contrários à vinda de médicos cubanos, avaliam muito mal a Presidente Dilma e rejeitam fortemente o PT. Ah, sim, para mais de 80%, as minorias como negros, mulheres e homossexuais têm direitos demais no Brasil, para parcela significativa os nordestinos não têm consciência política para votar e as cotas raciais também são um erro e "o governo deve acabar com isso". Em que pese a existência de outros perfis distintos deste - isso deve ser ressaltado -, as respostas acima correspondem à maior parte do que estavam ontem nas manifestações de Belo Horizonte. Grosso modo, não estão somente gritando "Fora Dilma". Eles querem simplesmente a Volta da Senzala''.

Os dados completos da pesquisa serão publicados logo mais. O trabalho de pesquisa contou com a colaboração do grupo Agência PRESS Consultoria - CASA PRESS

Pontos sobre o coxinhismo e o petralhismo

O petralhismo diz que a classe média é anti-PT porque é hipócrita e burra. No tucanistão sobretudo. Mas essa mesma classe média elegeu Lula em 2002 com 60% dos votos e Haddad, que teve votação retumbante em bairros de classe média, o que deixou o tucanato atônito.

Já o coxinhismo tá exultante com o enfraquecimento do PT. E o PT não foi outra coisa nesses anos que não um PMDB da esquerda, que na República Nova agiu para neutralizar os grupos radicais de esquerda e arregimentar setores médios em prol de um projeto de coalização de classe em favor do capitalismo, calcado no desenvolvimentismo e na legalidade burguês-democrática. A queda do PT é a deixa para a esquerda revolucionária tomar ainda mais autonomia. E fazer aquilo que os coxinhas mais temem: uma revolução.

12/04/2015

Análise parcial das manifestações de hoje contra o PT, a Dilma - e sim, não ignoremos - e a esquerda

Alguns jornalistas governistas passaram o dia todo no tuíter a celebrar que o ato foi minguado. No tipo estilo de torcida de futebol que é bem próprio dessa guerrinha pela hegemonia dentro do Estado burguês entre petralhistas e coxinhistas, os dois novos polos da pobreza do pensamento nacional.

Do ponto de vista dos que queriam derrubar a Dilma já agora, de fato foi um fracasso. Mas essa é uma minoria que não tem qualquer aspiração real no momento. Nem a burguesia e nem os setores políticos em torno desta se interessam por um momento de instabilidade quando, apesar dos pesares, a economia vai indo e o governo adota os programas neoliberais de gestão propostos pela oposição, sendo fraco o suficiente pra não conseguir nem mesmo se contrapor àquilo que vai ainda mais à direita do que o receituário azedo do banqueiro Joaquim Levy preconiza.

Para grupos de mídia, organizadores e os partidos políticos de oposição, o ato foi um sucesso: meter 100 mil pessoas em um Domingo, seja onde for, com pautas genéricas mesmo com todo o esforço da grande imprensa não é pouca coisa. A pauta da vez é ainda mais moralista, nacionalista, anti-esquerda e fascista que no último ato. E quanto mais se reduza, mais assim o será. E é um cenário que a oposição tenta evitar falando abertamente em impeachment, pra tentar fazer o movimento não arrefecer a ponto de ser sequestrado pela extrema-direita. E é uma proposta difícil diante da falta de liderança (leia-se Aécio).

Não pude acompanhar todos os grupos de imprensa, e ouvi por aí que Globo, Folha e Estadão usaram fotos dos atos passados ainda no período da manhã, inflando o tamanho da coisa. Mas isso é bobagem, pouco importante. O sine qua non aqui é a construção da retórica, do discurso. Na Globo News, havia enorme exaltação. A carapuça anti-governo foi alocada e foi bradada sem muitos pudores. A Globo no Fantástico foi mais sutil, mas não menos parcial: tratou de jogar uma cara de civismo no ato e de atrelar diretamente às manifestações contra a corrupção nas costas da Dilma e do PT. Depois uma fala de um líder do PT, que usou do petralhismo pra criticar a classe média; e de um porta-voz da OAB a condenar os atos que pediam intervenção militar, a emissora veiculou uma pesquisa do Datafolha que demonstra que 63% dos brasileiros são favoráveis à abertura de processo de impeachment.

O discurso está construído: ele vai pra cima do PT e seu objetivo não é outro que não acabar com o Partido dos Trabalhadores. Chamou-me muito atenção quando alocaram uma tiazinha pra falar e a mesma afirmou que luta "contra a corrupção e por mais saúde e educação". O jogo aqui é claro: "Sua vida é uma merda porque o governo é corrupto; não porque o Estado não existe pra melhorar sua vida''. O discurso vai nesse tom e vai ser levado a cabo até 2018.

Quem celebra o suposto fracasso do ato parece viver no mundo da fantasia. O PT está sendo aos poucos sepultado, com golpes fortes, constantes e que a estrutura burocratizada do partido e atrelada aos interesses do capital é incapaz de fazer cessar. O grande problema é que junto com o PT, que pra mim já tá claro que como partido político, e associações a ele ligadas, como UNE e MST, estão fadados à morte, a esquerda vai sendo atacada, mutilada e tendo seu campo de ação fortemente reduzido. É um preço a pagar por uma vez mais ter caído no conto da democracia-burguesa.

No entanto, sou otimista: como diriam os gregos, a crise não é estado próprio do fim, mas ponto inicial para o novo. Com o fim do projeto lulo-petista do PT, da falta de legitimidade de sindicatos pelegos, de grupos de apoio que usam bandeiras e símbolos comunistas sem nunca ter feito jus à isso, a esquerda revolucionária uma vez mais, unida, poderá se reconstruir sem as sombras desse nefasto conto de conciliação de classe e, por fim, atingir aquilo que buscamos.

Mas vai demorar. E é preciso trabalho. E muito qualificado.