Uma vez mais
o professor Emir Sader parece estar preocupado com a produção
intelectual latino-americana, mais precisamente com a aparente falta de
correspondência entre a produção intelectual e os processos políticos
“pós-neoliberais” (segundo o sociólogo brasileiro).
Para Sader,
outros momentos (como as décadas de 1950 e 1960 no Brasil) foram
marcados por intensa produção teórica sobre os processos em curso, com
significantes reflexões, como pode se comprovar pela produção de autores
como Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Celso
Furtado, Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, Milton Santos e Ruy Mauro
Marini, entre outros.
Entretanto,
diante dos atuais processos políticos em curso na America Latina,
qualificados como progressistas e na contracorrente da hegemonia
neoliberal, presenciaríamos uma espécie de silêncio intelectual. A
hipótese de Sader é expressa da seguinte maneira:
Uma parte
importante da intelectualidade latino-americana não está engajada em
apoiar esses governos a resolver dilemas atuais e projeções de futuro.
Alguns se isolam dos processos históricos concretos, ao assumir uma
postura intelectualista, incapaz de captar as novidades da realidade
concreta, tornando-se impotentes para contribuir para os processos
políticos concretos.
Duas
questões de imediato se apresentam. Se uma parte assim procede,
existiria outra parte que deveria estar contribuindo na direção da
compreensão desejada pelo autor. Cabe perguntar: onde estaria esta
valiosa reflexão? Quem são seus representantes ilustres? Em segundo
lugar, o que determinaria esta “incapacidade” de captar a “realidade
concreta” que levaria estes intelectuais à impotência? O autor tem uma
explicação provisória para responder à sua tese: alguns intelectuais
ficariam “encerrados nos muros das instituições acadêmicas, voltados
para as problemáticas dissociadas da realidade externa, presos às
dinâmicas institucionais”.
É bem
difícil analisar a produção intelectual de uma época à quente, isto é,
no momento mesmo em que ela ocorre. Muitas produções não alcançam a
dimensão e a repercussão que lhes cabe em sua própria época e são, por
assim dizer, destiladas e refinadas pelo tempo, até que o devir revela a
pertinência daquilo que se afirmava. A própria lista apresentada por
Sader tem bons exemplos disso. Se há autores que em sua época foram
reconhecidos, como Sérgio Buarque de Holanda e Celso Furtado, por
exemplo, o mesmo não ocorreu com Caio Prado Jr, Florestan Fernandes e,
menos ainda, Ruy Mauro Marini. Seria bom destacar que parte dos autores
citados se colocaram claramente contra a corrente, criticando e se
chocando com aquilo que Caio Prado Jr. chamava de “verdades consagradas”
– e pagaram um preço por isso.
O princípio
que move o autor está correto. Em nossa perspectiva, fundada no
marxismo, os intelectuais têm a responsabilidade de voltar seus olhos
para o real e incidir sobre ele, são parte do movimento vivo da luta de
classes e evitam as confortáveis armadilhas da neutralidade axiológica
ao gosto da sociologia compreensiva weberiana ou da “objetividade”
funcionalista. Da mesma forma, o risco do isolamento institucional (eu
não diria apenas acadêmico institucional, pois há outras instituições
com potencial de aprisionamento do pensamento igual ou superior ao
presente na academia) é um fator concreto de limitação no sentido do
desenvolvimento de um pensamento crítico.
No entanto,
nesta direção tenho uma boa e uma má notícia para Emir Sader. Há no
Brasil uma intensa e significativa produção teórica que se põe a
refletir sobre os processos políticos em curso. Certamente há também na
America Latina, mas, uma vez que o autor se detêm no Brasil, farei o
mesmo.
Vemos no
período mais recente um renovação do pensamento crítico, não apenas em
seminários e simpósios acadêmicos de grande qualidade, como na produção
intelectual da esquerda brasileira. Há
sempre o risco de deixar de fora muita coisa relevante, no entanto,
apenas no intuito de exemplificação podemos citar a relevante produção
de Ricardo Antunes,
da Unicamp, sobre o mundo do trabalho em franca oposição e resistência
contra a ofensiva dos que alegavam o fim da determinação do trabalho, da
lei do valor e da centralidade das classes nos processos políticos.
Também relevantes são os estudos de Virgínia Fontes
sobre o Capital Imperialismo, pesquisadora infelizmente tão atacada
pelo pensamento pós-moderno que domina a área de História, trincheira na
qual conta com colegas de igual calibre como Osvaldo Coggiola (USP)
ou Marcelo Badaró (colega de Virgínia na UFF). Podemos somar a estes
estudos relevantes o professor da UFSC Paulo Tumolo e seus estudos sobre
educação e sobre o movimento sindical, assim como estudos pioneiros de
Antônio Ozaí (hoje na Universidade Estadual de Londrina), assim como as
contribuições de Ruy Braga, Ricardo Musse e Lincoln Secco na USP; Antônio Carlos Mazzeo e Marcos Del Roio na Unesp – nesta instituição devemos lembrar os pertinentes estudos de Giovanni Alves. E
tantos outros, em diversas instituições, entre os quais me incluo, com
meus estudos sobre consciência de classe e sobre a trajetória política
do PT no período histórico que nos coube viver.
Há no
Serviço Social, o campo que me acolheu carinhosamente, uma produção
igualmente significativa e que incide muito além da área profissional da
qual parte. Temos as clássicas reflexões do camarada José Paulo Netto, de Marilda Iamamoto, de Carlos Nelson Coutinho,
de Maria Inês de Souza Bravo e de toda uma geração de grande qualidade
teórica e política como Elaine Behring (UERJ), Maria Lucia Durighetto
(UFJF), Evilásio Salvador (UNB), Sara Granemann (UFRJ) e Beatriz
Abramides (PUC SP), entre tantos outros.
Ainda
poderíamos falar de novos intelectuais que apresentaram seus trabalhos
bem recentemente como Rodrigo Castelo (Unirio) e seu estudo sobre o
social-liberalismo, Mirla Cisne (UFRN) e seu brilhante estudo sobre
Gênero e relações sociais de sexo, Morena Marques (ex-UNB, hoje Unirio) e
seu estudo sobre a Revolução Brasileira, uma análise da estratégia
democrático-popular, assim como a belíssima tese de doutoramento de Valter Pomar, defendida na USP, que estuda especificamente o programa econômico dos governos petistas.
Poderíamos
ir muito mais longe neste levantamento, mas podemos parar por aqui pois,
além da qualidade de suas contribuições, há algo comum entre estes
intelectuais citados. Todos eles, evidente que com posturas e
posicionamentos diversos, refletiram em algum momento sobre os processos
políticos em curso, especificamente sobre algum momento dos 12 anos de
governos petistas ou processos a eles relacionados. Outra característica
é significativa para a problemática que discutimos: nenhum deles pode
ser considerado um intelectual que se “encerrou nos muros das
instituições acadêmicas”; são, em diferentes graus, intelectuais
militantes, comprometidos com a luta de classes e com claro compromisso
político.
Há ainda
outra característica: refletem sobre os processos políticos, como
diversos posicionamentos, de apoio ou de oposição aos governos petistas,
mas todos eles souberam manter a necessária perspectiva crítica e
reflexiva essencial à boa produção teórica no campo do marxismo. Mesmo
aqueles com compromissos partidários claros, como é o caso de Valter
Pomar, Lincoln Secco e Ricardo Musse (e poderíamos incluir aqui Márcio Pochmann, Marilena Chauí e André Singer)
não perderam a objetividade que lhes permite ver as contradições dos
processos em curso e seus evidentes limites, fugindo do servilismo que
confunde apoio político com rendição ao governismo e aos cálculos do
pragmatismo político.
Neste
sentido, a boa notícia é que se Sader busca uma produção teórica que
reflita sobre os “processos reais”, ela existe e é de qualidade e vasta.
Talvez o que Sader não encontre, e seu texto revela seu mais puro
desejo, é uma produção intelectual que está “engajada em apoiar esses
governos”, talvez pelo simples fato de que esse governo (pelo menos no
caso do Brasil) se apresente cada vez mais indefensável para aqueles que
defendem os trabalhadores.
Um “deslize”
interessante que vemos na coluna de Sader é que ele centra a reflexão
necessária dos processos políticos por suas contradições “com o
movimento do capitalismo em escala global”. Ora, evidente que isso é
importante, ainda que muito idealizada e cevada de subjetivismos
otimistas, mas… suas próprias contradições internas não seriam
essenciais para a reflexão que procura “contribuir para os processos
políticos concretos”? Se sobre a análise crítica (não importa se de
apoio ou de oposição ao governo) temos excelentes exemplos de boas
contribuições, é no campo do governismo arrogante, rebaixado e
intolerante que vemos um enorme silêncio sobre as contradições reais que
se apresentam nos processos concretos.
Não há
nenhum problema em um intelectual apoiar um governo de sua preferência, é
um direito de qualquer um. No entanto, a questão é se este apoio faz
com que sua produção deslize da análise da “realidade concreta” para a
pura justificativa laudatória que esconde e obscurece as contradições
que precisam ser compreendidas. Como nos alertou Silvio Rodriguez em seu
último trabalho, lembrando a importante contribuição de nosso
comandante: “Dijo Guevara El humano, que ningún intelectual debe ser asalariado del pensamiento oficial”.
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