11/05/2015

O capitalismo venceu


 Acordo logo cedo, pois tenho de ir à labuta. Dia frio, modorrento, com o insuportável barulho de carro à residência adentrar sem permissão pedir e a sorrateiramente avisar: mais um dia difícil está para chegar.

 Vou à padaria e lá escuto alguns brotos a comentarem sobre futebol e causos do quotidiano enquanto a tevê, sintonizada na Globo, apresenta matérias sensacionalistas e factóides para chocar: um motorista perdeu o controle e bateu em um poste, afirma o apresentador. Enquanto espero o pão francês ser ensacolado, ouço exclamações. Muda a matéria: corrupção-não-sei-aonde-e-em-todo-lugar. E a platéia uma vez mais reage: - tudo ladrão! - essa merda não tem jeito!

 Enquanto tomo o rumo de casa, adentra um jovem de classe média, que interage: - Brasífilis! Bananolândia! Dou mais alguns passos, olho para trás, e vejo os mesmos senhores extasiados com a propaganda de carro que intercala a programação causuística do matinal global.

 Chego em casa, faço a refeição de modo apressado, uma vez que o ônibus sempre lotado e pronto para quebrar, eu não posso perder. Mas enquanto engulo o pão, dá tempo pra dar uma espiadela a mais na televisão. E lá está Miriam Leitão proclamando com base na leitura de manuais didáticos de economia mainstream o que o Estado burguês deve fazer para promover o bem-estar geral da população. Fosse apenas chulo, comento com meus botões, seria até razoável.

 Pego o ônibus, motorista mal-humorado, fila enorme na catraca. Há algo estranho. Não vejo o cobrador, que era um piadista que a nossa terrível manhã minimamente alegrava. Pergunto ao motorista que laconicamente responde: - Demitiram todos. Agora eu dou o troco.

 Estava explicado!

 O Governo do Estado de São Paulo que acabara de aumentar o preço da passagem, em contrapartida, para melhorar o serviço, demite um prestador de serviço. E fica o motorista incumbido de dirigir e passar o troco para aqueles que ainda não possuem o cartãozinho, o Ruim. É, eu vou ter de comprar o Ruim, concluo.

 Ao chegar no trabalho, todo mundo estressado, o porteiro clama pela aposentadoria, o mais jovem, seu assistente, pensa no feriado, e eu, não tão apressado, sinto-me contente em pensar que 12 horas depois, se nada de especial acontecer, como uma garoa, eu estarei novamente em casa, mesmo que exausto, acossado.

E todos os meus colegas desmotivados.

 Que vida dos diabos!

 Salas super-lotadas (com ou sem hífen?), crianças e adolescentes abandonados a própria sorte e estafados, falta de material para a consecução de um bom trabalho: bem-vindo à sala de aula no Estado de São Paulo.

 A Guerra Fria para o terceiro ano do Ensino Médio eu terei de pautar. Ensinar, intermediar, ensino tradicional ou construtivista? Qual método utilizar? Que indagação besta e fora de propósito, piá. E para confirmar um discente me questiona se fazia muito frio quando da tal guerra.

 Deus nos acuda, afirma uma professora ao o causo eu lhe contar. Ao passo que Paulo, mais sábio, corrige: acusa, acusa... Só não sei de quê. O que fizemos? - questiona em tom de lamentação. Uma professora católica, conservadora, eleitora de Alckmin, que acredita que faz parte da elite por ganhar 2 mil reais por mês enquanto alguns dos pais de seus alunos passam fome, tripudia: não reclamem, é melhor que Cuba. Por que você não vai pra Cuba? - pergunta ironicamente. E se vai. Vai com as cartilhas do governo do Estado repleta de erros ensinar que devemos simplesmente aceitar a miséria em que vivemos. E agradecer.

(Tempo depois foi afastada porque estava obrigando os alunos a rezarem. Acontece).

 Mais quatro turmas e encerro o meu expediente, duro expediente. No ponto, pego o celular, acesso o tuíter e vejo que uma crueldade foi cometida contra um jumentinho. Um monstro tentou matar a pauladas, a não conseguir, usou uma faca. E ainda enterrou o bicho vivo. Essa notícia, que não é fictícia, acabou com meu dia. No ônibus pisam no meu pé, empurram-me, mas mais nada importa: nem mesmo a criança a dormir ao relento, algo que passa a parecer até uma violência normal perto da cometida contra o pobre jumentinho. E pergunto-me: por que tanta maldade?

Chego em casa, e lá pelas tantas ligo a tevê e lá está a passar um comercial de uma empresa que se diz de processamento de carne, e que paga milhões por uma simples intervenção. Um aluno, dias antes, me perguntara porque apesar da concessão pública as emissoras não discutem a questão do consumo de carne. Talvez aqui esteja a explicação. Ou não?

E continuamos. E continua a programação, daquele mundo da tevê, que estréia uma novela sobre um bairro de classe trabalhadora, vulgo periferia, que os protagonistas, como era de se esperar, não são trabalhadores. Ou seja: não são seus verdadeiros protagonistas.

Louva-se o casebre. Louva-se o que emerge da intensa marginalização. E dizem: veja só, morar numa casa com goteira, pequena, sem acabamento e sem mesmo rede de esgoto não é tão ruim. Vai assim: é só tocar um funk, dançar e o que a vida tem de bom, mesmo assim, é passível de se aproveitar. Comemorar.

O quê?

Perco a paciência, desligo a tevê e em busca do que fazer enquanto as atividades das próximas aulas hei de aprontar, ligo o rádio e lá está Jabor, na CBN, a propalar: o capitalismo venceu!

E nós todos perdemos, complemento antes de uma vez mais perder a paciência e desligar o rádio.

Nenhum comentário: