18/05/2015

Crise econômica e consequências sócio-políticas

 Estes dias estava a me deparar com algumas foto-mensagens tétricas de conteúdo absolutamente simplista de página de teor fascista no Facebook. Ao notar que aquele esquálido material já tinha sido compartilhado por quase 200 mil pessoas, com mais de 100 mil curtidas, bateu-me de forma abrupta um sentimento de desespero consubstanciado com impotência. É impossível lutar contra isso, pensei desolado.

 E calcado em três aspectos que me fizeram refletir: a discussão sobre direitos de minorias requer alguma sofisticação teórica. Não é de fácil consecução, por exemplo, versar sobre as consequências do racismo e as melhores formas de começar a combatê-lo ainda dentro do Estado burguês, com a sociedade dividida em classes e todas as contradições daí decorrentes; em contrapartida os contra-argumentos (se é que os podemos chamar assim) como o fascistóide mensurado acima surfam no senso-comum, no discurso pronto que, simplório, se encerra em si mesmo; e toda a tradição conservadora da formação dos brasileiros que de uma maneira ou de outra induzem a opinião pública, calcada também em educação formal defasada, a aceitarem com facilidade -- e prazer -- esse tipo de retórica chula conservadora e que não apenas legitima o status quo como ainda insere uma série de juízos que são anteriores -- e muito piores -- que aqueles defendidos ao menos textualmente em nossa Constituição burgo-liberal.

Feita esta breve ponderação, comecei a me recompor. É evidentemente a luta, organizada, em partidos anti-capitalistas, a melhor forma de atuação da classe trabalhadora não apenas em busca de uma sociedade igualitária, mas também na defesa daquilo que duramente foi conquistado e integrado ao Estado de direito burguês.

 Histórico de violência

Ainda a respeito desses discursos de ódio, fascistóides e que cada vez mais passam a ser legitimados de modo oficioso pela sociedade como se se limitassem a retórica idiossincrática, relativizando-se a objetividade dos fatos, uma das mazelas pós-modernas, é preciso compreender a formação social brasileira, que é, grosso modo, concebida a partir da violência: primeiro a violência do colonizador sobre o colonizado; da metrópole contra a colônia; do senhor contra o escravo; do homem contra a mulher; do catolicismo contra as demais manifestações religiosas; e por aí vai até chegarmos em um cenário capitalista onde a exploração e a violência tomem características típicas da luta de classes, a assentar-se nela.

Esta compreensão, ainda que aqui apenas esboçada sem a profundidade exigida, encerra o mito do brasileiro como um indivíduo amoroso, festivo, sempre alegre. Estas características em verdade dizem muito mais respeito a uma construção verticalizada, imposta, que calcada em estereótipos das etnias africanas que compõem a cultura brasileira e na tentativa de amainar contradições sempre muito vívidas no Brasil foram recebidas como verdade pelo imaginário popular, seja nacional ou internacionalmente, a ser o samba na primeira metade do século XX e posteriormente o futebol a grande plataforma de propaganda dessas idéias que carregam pouca verossimilhança.

Estado autoritário e pouca participação popular

Outra característica desse fenômeno é como ele é encarado pela população em geral, assumido como verdadeiro mesmo a contrastar com a realidade vivida: só ano passado mais de 50 mil homicídios foram cometidos no país e a violência é assistida em telejornais como forma de entretenimento, seja matinal, noturno ou mesmo em pleno horário de almoço.

O nosso homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda, que age com o coração e ignora a racionalidade, é assumido paradoxal e erroneamente como bom, educado, prestativo. E passivo. E é um fenômeno que só pode ser compreendido a partir da imensa distância do Estado, autoritário, de modelo historicamente prussiano, para a sociedade civil e as classes sociais que, massivamente combatidas, exploradas e enfraquecidas, não tem aderência à ele.

É diante deste fenômeno que o Estado e seus órgãos alinhados -- na época da autocracia burgo-militar as Organizações Globo e a imprensa, por exemplo -- ganham grande autonomia em relação às massas e poder para determinar a superestrutura.

Destarte, a construção simbólica do brasileiro torna-se bastante alheia à realidade. E pior: sem direito à contestação. As Organizações Globo, por meio da Rede Globo e das telenovelas, por exemplo, ícone máximo de propaganda e discussão da brasilidade por meios de comunicação de massa, durante décadas constituiu uma construção da narrativa em que o homossexual, o negro, a mulher e, por fim, os trabalhadores conviviam com certa harmonia com personagens hostis e de perfil mainstream.

Mesmo em folhetins do final dos anos 80 e metade dos anos 90 em que os autores assumiam críticas sociais e discursos políticos (veja esta maravilhosa crítica de O Rei do Gado), as personagens em geral apresentavam tais narrativas de modo sutil ou com ênfase reformista. A sociedade com base em hierarquia do manda-e-obedece; do que tem-mais-e-o-tem-menos nunca apareceram como ponto fulcral de crítica cuja qual deveria ser destruída.

A democratização, o poder do monopólio do Estado e seus órgãos oficiais

A partir dos anos 90, da imersão de um capitalismo mais de mercado do que de Estado, este foi a perder aos poucos o monopólio que detinha da compreensão e da discussão política. Isto fica mais evidente em termos midiáticos com a perda da audiência da Globo, que chega nos fins dos anos 90 a ter que dividir a liderança de audiência com SBT em algumas oportunidades -- algo que foi a se tornar cada vez mais comum.

E a Globo é um capítulo muito peremptório dentro dessa concepção de construção do imaginário nacional. Primeiramente porque ela é um projeto da autocracia burgo-militar (64-85) que nasce já um ano depois do golpe e tem como objetivo ser instrumento oficial de propaganda, embora surja privada e com ênfase comercial (ainda que com vasto investimento público e leis que a permitiram controlar o mercado). Isto a distingue de emissoras como a BBC no Reino Unido ou ARD e ZDF na Alemanha.

 No entanto, pela falta de concorrência, a emissora pôde durante muito tempo se calcar em uma programação que fugia do quotidiano e do gosto da maioria da população, a negar inclusive as diferenças regionais marcantes que ajudam a conformar o Brasil. À essa postura, um tanto que alheia à barbárie do dia a dia, se convencionou a chamar "padrão Globo de qualidade", por ter qualidade de produção de ponta e um conteúdo não tão miserável -- embora ruim e pobre -- que dialogava com todas as classes sociais.

 Isto passou a ser um entrave conforme a Globo e, atualmente, a televisão deixavam de ter monopólio sobre o entretenimento. E isto se deu em três momentos: fortalecimento da concorrência na tevê aberta que conseguiu puxar a audiência dos mais pobres com programação sensacionalista, donde se destaca o SBT nos anos 90; com a fuga da classe média para a tevê por assinatura; e por fim com a internet.

Internet: mais liberdade, mais horizontalidade. E a realidade nua e crua

Mesmo as Organizações Globo tendo predomínio em todos os setores de mídia no país, muito em conta das leis estatais que datam do tempo da autocracia burgo-militar e que lhe concede privilégios e limita a concorrência, com a internet a discussão é muito mais horizontal. Os meios de comunicação burgueses perderam a capacidade de delimitar completamente a discussão pública -- ainda que tenham ainda enorme capacidade de influenciá-la.

Isso pôde ser observado muito claramente com as manifestações de Junho de 2013, onde a imprensa burguesa, uníssona, tratou de condenar e criminalizar o movimento como de praxe e teve de rever sua postura para não ser deslegitimada por completo e perder a possibilidade de influenciar, algo que se deu pela força da internet.

Os exemplos negativos também existem e abundam. E o exemplo citado no intróito do texto não é claramente o único. De modo mais sentido, talvez, caiba lembrar da última eleição presidencial, quando uma certa onda azul tanto no Facebook, mas principalmente no WhatsApp inundou de mentiras e factóides as redes e certamente foi responsável pela votação gorda do candidato do PSDB Aécio Neves.

 Da eleição pra cá esses instrumentos, que são utilizados por pessoas que têm menos compromisso social e com a verdade que os órgãos de imprensa tradicionais da burguesia, têm se direcionado para o ataque contra as bandeiras progressistas, dos Direitos Humanos e da esquerda. Com enorme adesão por toda uma estrada já previamente asfaltada pela formação conservadora, mas com a ajuda de um sistema educacional ruim -- e se verifica que não apenas o público -- e com o incremento da raiva e do ódio sempre presentes. Algo que os órgãos oficiais da imprensa burguesa tentaram dissuadir em sua força e contundência, mas que a televisão já há algum tempo em nome de pontos no Ibope começava a abrir espaço com Datenas, Rezendes, Sheherazades et caterva.

 O amálgama desses fatores, todos eles agora a encontrar algum grau de coesão com a crise econômica capitalista, explicam em boa parte toda a pletora de ódio, raiva e discursos que deslegitimam a humanidade do outro; um proto-fascismo que aqui em São Paulo, pelo menos, já não tem nem mesmo o medo de mostrar a cara e que desmistifica a idéia de um Brasil sem conflitos, harmonioso e apto a acolher bem o outro. Como assevera Manuel Castells aqui, isto é uma falácia. Uma falácia historicamente construída.



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