03/04/2016

O ovo ou a galinha? Sobre a violência no futebol.

Escrevo este texto forçado por mais um acontecimento lamentável que envolve, segundo alguns órgãos de imprensa e relatos individuais em redes sociais, uma briga generalizada entre torcidas organizadas de Corinthians e Palmeiras, antecedendo o clássico que ocorrerá logo mais e que chegou inclusive a resultar em troca de tiros e na morte de uma pessoa que nada tinha a ver com o confronto. Lastimo muitíssimo o ocorrido e deixo aqui meu pesar aos familiares da vítima, mais uma em um país em que o número de homicídios chega a quase a 60 mil -- um número absurdo superior ao de muitos países em conflito bélico.

E aí está um ponto fundamental e geralmente negligenciado em análises simplistas que ignoram a totalidade dos fenômenos: nós marxistas temos como pedra angular entender qualquer fenômeno a partir de sua materialidade e dimensão, que nunca se basta em si mesma, afinal o marxismo não é um mero instrumento de análise, mas a síntese mais avançada jamais dantes produzida pela humanidade sobre tudo aquilo que nos cerca. Logo qualquer fato deve ser abordado em toda sua dimensão, contendo sua estrutura e superestrutura.

E se o futebol e seus adeptos estão incluídos numa determinada sociedade, é óbvio que vão carregar consigo as características próprias à ela. É uma conclusão um tanto óbvia, mas que é geralmente esquecida e negligenciada em análises rudimentares calcadas no mais tosco senso comum;  A lógica prevalente acaba sendo a mais simplória, a de que há indivíduos malvados por natureza e que estes precisam apenas ser apartados da sociedade, ignorando-se como esses sujeitos são forjados, como a realidade se materializa e deve ser vista para além das meras aparências refletidas em espelhos sociais viciados.

Dito isto, é preciso caracterizar as torcidas organizadas de clubes brasileiros, que não destoam muito do clássico exemplo de violência no futebol do Velho Continente, os hooligans. A maioria são jovens, filhos de trabalhadores de baixa renda e que vivem em áreas periféricas. Tanto no Brasil quanto na Inglaterra o perfil daqueles mais assíduos nesses grupos são semelhantes (como se pode aferir tanto no livro "Entre os Vândalos" de Bill Buford e no livro "torcidas organizadas do futebol" do sociólogo Carlos Alberto Máximo Pimenta): são lumpemproletariados, isto é, jovens na casa dos 20 anos que não estudam e tampouco trabalham, alguns envolvidos em atividades como tráfico de drogas e outras ações marginalizadas no seio das sociedades capitalistas. Em suma: são jovens em situação absolutamente degradante, cuja própria relação com o mundo e consigo mesmo é constituída a partir do signo da violência e da brutalidade. Não espanta, ou não deveria, que tais grupos frequentemente recorram a tais atos para na sua vida encontrar significado.

Repressão

Quando de tais acontecimentos ocorre o efeito manada de pedidos de mais repressão, o que é natural, uma vez que a violência é naturalizada nas relações capitalistas -- e mesmo é uma condição natural ao sistema, seja no plano material e, a partir disso, no simbólico. E tal fato é uma mediação utilizada pra sustentar a idéia de "ordem", de que a repressão vai manter ou pelo menos dar uma sensação -- mesmo que muito equivocada -- de segurança. É um estado de falsa consciência bem possível de ser atestada quando se nota que as Polícias Militares há muito reprimem com violência esses grupos, sejam nas periferias onde moram, seja nos entornos e mesmo dentro dos estádios, sem porém qualquer resultado efetivo a não ser o da agressão pela agressão -- reforçando portanto a simbologia desses jovens do lumpemproletariado e da violência como símbolo máximo de existência.

Na Inglaterra, durante a gestão da neoliberal Margareth Thatcher, a ação perpetrada para afastar a violência dos estádios, personificada nos hooligans, foi afastar o proletariado e por conseguinte os lúmpens a partir da elitização do acesso, com encarecimento do ingresso ao passo que as medidas antissociais (que Eric Hobsbawm bem elencou de "egoísmo como política pública) aumentaram o fosso entre ricos e pobres, deixando estes últimos completamente alijados do esporte que ajudaram a construir e popularizar, numa relação umbilical desde o século XIX. Não é a toa que nos estádios da Inglaterra, hoje, as torcidas mais parecem a platéias de teatro. O clima tipicamente futebolístico, de paixão e envolvimento mais próximo com cânticos e manifestações populares foi definitivamente para o espaço em prol de ações artificiais e rigorosamente controladas de modo policialesco como cita Peter Caton no excelente livro "Stand Up Sit Down: A Choice To Watch Football" e aqui o jornalista da ESPN Mauro Cézar Pereira: (Vejam aqui esse impressionante relato de Mauro Cézar Pereira da ESPN).

No Brasil, como pode se verificar, tal modelo já tem sido implantado há bastante tempo e se potencializado a partir da construção das novas arenas para a Copa do Mundo ocorrida em 2014 e a necessidade de reafirmar o esporte mais e mais como um produto que necessita ser vendido a consumidores -- e não a torcedores apaixonados, que é o que amantes do futebol são. Esse fato não pode ser jamais pensado longe da lógica que rege as sociedades atuais: o capitalismo e a necessidade do lucro, onde tudo vira mercadoria -- até a paixão, os amores, a afetividade. Tudo pode ser comprado. E para mercantilizar é necessário, é claro, embelezar e clarear o produto afastando mais e mais os torcedores que o próprio capitalismo com sua violência quotidiana ajudou a brutalizar.

É importante reafirmar, porém, que a defesa de um futebol mais democrático não pode se tornar a defesa de um futebol refém do lumpemproletariado. O lúmpen é uma terrível consequência do capitalismo. A luta contra "o futebol moderno" não pode se tornar um mero slogan saudosista de quando o futebol era um espaço que, se não reafirmava a elitização, ajudava reforçando a idéia de degradação: torcedores tratados como bois e onde a violência, a falta de educação e uma paixão fanatizada ao extremo típica de setores muito marginalizados eram regra sempre. Um estádio minimamente confortável e uma muito apaixonada torcida, mas civilizada, encarando o esporte como ele é, um mero jogo e não uma disputa de vida e morte, não são coisas antagônicas. Antagônico é civilidade e o capitalismo, afinal a regra mais peremptória da dominação do capital sob o trabalho é e sempre foi a barbárie. E não só no futebol, que é parte disso tudo, apenas.




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