18/04/2016

Autópsia do governo Dilma e do PT. Ou: chegamos ao inverno.

Neste texto pretendo fazer uma breve análise daquilo que levou o governo Dilma a sofrer o impeachment, um golpe branco, e que consigo deve finalizar o período do Partido dos Trabalhadores à frente do Governo Federal, mas não apenas: é o fim, e de forma melancólica, do lulismo e do PT enquanto organização que representava um projeto de esquerda e que com ele inspirou e moveu toda uma geração em torno de suas lutas e bandeiras. Em verdade o mito PT já começou a se diluir há muito tempo, muito antes mesmo de 2002 e da famigerada "Carta ao Povo Brasileiro", quando o lulismo se associou publicamente e de modo desavergonhado (aqui sem imputar qualquer juízo moral, apenas descritivo) ao Consenso de Washington, prometendo seguir seu receituário. Ali foi apenas o gesto final que já era passível de ser enxergado, como dito, desde muito antes. No entanto, como é praxe entre os militantes orgânicos do Partido Comunista Brasileiro, rejeito firmemente visões nutridas de esquerdismos (já diria Lênin, a doença infantil dos comunistas), que tenta igualar o PT e os governos Lula e Dilma a governos anteriores como o de FHC. Há muitas diferenças e seria impreciso e mentiroso perante os fatos negar as conquistas obtidas neste período.

Mas para não deixar a leitura muito extensa e tediosa, irei por tópicos. Contudo cumpre mensurar que, como qualquer incidente e tragédia, e a queda do PT tem um lado trágico que deixará marcas, há muitas pontuações a fazer. E antes faço uma analogia que me parece muito pertinente: tempo atrás fiz uma breve pesquisa sobre acidentes nas provas de automobilismo (Fórmula 1 e Fórmula Indy, as duas categorias que mais acompanho e gosto), e li uma frase não lembro de quem (perdoem-me pelo ato falho) e que é bastante cirúrgica: nunca um acidente fatal é motivado por apenas uma causa. Quando é uma só, ele acaba não sendo fatal. E se serve para as pistas também serve para a política -- e qualquer outra coisa. Vamos a elas, portanto.

Negação da política e o lulismo.

O PT começou a decair ideologicamente há muito, muito tempo. O sinal oficial perceptível publicamente foi o Congresso de 92 quando o partido abandonou o marxismo como linha teórica, fez apelo à democracia representativa burgo-liberal, uma forma de ditadura capitalista (e isso agora é bastante visível pra quem se negava a ver), e marginalizou todas as outras tendências que ainda bravamente resistiam ao processo de centralização de ações em torno do campo majoritário do partido e seu maior expoente, quem seja, Lula. Já ali havia sinais de degradação fortes. Florestan Fernandes, falecido em 95, as enxergava e denunciava. Outro que também pontuava a respeito era o ex-prefeito de Santos, e nosso ex-camarada do PCB, o David Capistrano Filho. Dizia ele, que faleceu em 2000, ou seja, antes do PT chegar à presidência, que o PT acabaria com todos os vícios do PCB da década de 80 e nenhuma de suas virtudes. Se estivesse vivo certamente mudaria o diagnóstico -- mas não para melhor, obviamente.

Lula paz e amor
Dois nomes se destacavam no campo majoritário petista: Lula, a figura pública; e Zé Dirceu, a cabeça pensante, o gestor do modus operandi petista calcado no pragmatismo e que começou a construir um projeto de poder e não um voltado para a classe trabalhadora. É peremptório asseverar, sem recorrer a anacronismos, que toda a esquerda que viveu os anos 80 e 90 passou por momentos decisivos e difíceis: caiu a URSS; o neoliberalismo se apresentou de modo muito sedutor; os EUA se ofereceram como um possível parceiro no desenvolvimento da América Latina; havia todo aquele discurso obtuso, mas aceito à época, que as ideologias haviam acabado, que o pragmatismo em torno do livre mercado e a defesa da democracia burgo-liberal eram o que restava e um fim em si mesmo. Toda a esquerda sofreu com isso, inclusive o PCB (que em 92 rachou dando origem ao famigerado PPS) e o PT.

E todo esse pragmatismo voltado a fazer do PT um campeão de eleições -- e nisso, cabe mensurar, Zé Dirceu se saiu muito bem -- foi aos poucos a fazer o partido se afastar das bases, buscando cada vez mais atalhos puramente político-eleitorais pra se vender como legenda e vender sua grande figura, Lula, em eleições sempre mais semelhantes a relações meramente mercantis: a cada quatro anos alguém se vende pra você e sua pessoa decide se compra ou não. As campanhas milionárias, marqueteiros inspirados a criarem slogans e programas eleitorais muito melhores que os da oposição etc. foram a reforçar a idéia de um PT calcado em figuras, em simbologias, mas raramente ou só nos momentos de dificuldade (como na campanha de 2014) em idéias.

E bom, quais eram as idéias dessa figuras do PT? O lulismo tem simbologias de classe, e até hoje o PT tem uma base classista, mas não é um projeto de esquerda, coerente e bem orientado para um fim que vá além dos mandatos eleitorais. As duas principais características de Lula sempre foram o poder de conciliar com frações distintas ao passo que tinha muita influência nos movimentos sociais. Mas isso, por si só, nunca fez do PT lulista um projeto puramente de esquerda, ainda que englobasse alguns dos seus objetivos, cumprindo alguns e outros não durante seus mandatos. Confirma a tese supracitada o fato de Lula e o campo majoritário do PT não terem qualquer constrangimento em adotar a cartilha social-liberal em 2003 cujo principal mandamento era manter o tripé macro-econômico dos tempos privatizantes de FHC. Ou também se aliar ao que de pior a política burgo-liberal tupiniquim tem a oferecer. É o jogo, diziam. E todo jogo cobra um preço -- às vezes com juros e correção altíssimas.

Governos Lula e governos Dilma

Há uma pletora de textos a pontuar de forma bastante mais rica vários acontecimentos e direcionamentos desses 13 anos de PT na presidência. Mas em geral dá pra dizer que os governos social-liberais de Lula contaram com um contexto favorável: economia global capitalista em crescimento, elevação dos preços das commodities e o crescimento alarmante da China. Tudo isso, associado ao poder que o PT tinha nos movimentos sociais, apassivando-os, permitiu um pacto que, naquele momento, rendeu muito à burguesia, que nunca lucrou tanto por aqui, e fez com que houvesse a inclusão de muitos a partir do consumo.

Só que com a crise de 2008, ações feitas aqui e acolá, umas dando certo e outras não, ficava mais claro que, conforme o período de recessão mundial fosse a perdurar, afinal não era uma crise qualquer, uma simples crise cíclica, mas sistêmica, haveria a necessidade de alguém pagar a conta. E o pato da FIESP é didático: a burguesia nunca pagou e não vai ser agora que iria pagar. E não viam em Dilma uma pessoa capaz de dar o boleto para a classe trabalhadora efetuar o pagamento. Ou não de uma vez. Mesmo o Lula a tentar fazer passar uma "Carta ao Povo Brasileiro 2.0" em vários de seus discursos, prometendo diálogo, conversa e pactuação, as frações burguesas, fartas do petismo, disseram não e avançaram rumo a expulsar o PT do poder e talvez até mesmo extirpá-lo enquanto partido inserido nas massas com alguma força.

Dilma II

Outra questão importante e que acelerou o processo de esgotamento do lulismo foi a incapacidade de Dilma em fazer política, em se relacionar com a base no Congresso e manter ao seu lado setores da burguesia. Seu jeito de ser, sua forma de gerir e os erros de sua equipe -- e foram muitos -- minaram a confiança que tinham no seu governo. Em 2014, quando perderam de vez o mercado financeiro, alguns ministros a aconselharam a mudar a política econômica e tirar Mantega da Fazenda. Claro que esse movimento era em torno da defesa de ações de arrocho, o que demonstra duas coisas: o governo refém dos setores da burguesia em suas políticas, inclusive da especulativa (nenhuma novidade aqui, mas é preciso citar o grau de submissão); e como voltar às bases, o que as propagandas eleitorais sugeriam, nunca foi uma possibilidade. Até porque, convenhamos, o PT já há muito tempo não é voltado para políticas de base. No dia em que Lula foi convocado pra depor coercitivamente espantou o fato de parte da mobilização ter vindo apenas da ala da aristocracia sindical. Não se via peões. E estamos a falar no nome que hoje é maior que o PT e principal liderança no país. Não é pouco.

Crença no republicanismo
E era óbvio que um partido despolitizado, resumido à uma figura política muito hábil, mas que se favoreceu de um contexto altamente positivo economicamente e que em muito foi responsável por esse próprio papel de degradação da legenda, a falta de ação contra monopólios, sobretudo os da área da comunicação, e os escândalos de corrupção, usados por esses próprios monopólios e pela oposição para atacar o governo, foram tornando o Partido dos Trabalhadores refém unicamente dos resultados da economia. E como a economia não vai nada bem, o apoio dos setores da burguesia que ainda se mantinham com o governo (indústria e ruralista) foi perdido e a queda se tornou questão de tempo. O PT acreditou no mito do republicanismo: que o Estado burguês é um ente em disputa e que dá pra conciliar sempre. A chave que a burguesia deu em 2002 agora ela resolveu tirar. Sem motivações fortes para tal, tendo de recorrer assim a um golpe branco, e ao PT pouco ou nada resta fazer dentro do campo da institucionalidade burguesa. É esse o jogo.

Coxinha versus petralha. Ou: como o PT perdeu a classe média.

O PT nunca foi um partido anticapitalista (ele teve tendências anticapitalistas, o que é diferente) e dos anos 90 pra cá o partido assumiu sem medo a defesa de um Estado provedor e assistencialista do capital privado, o que é a finalidade mesma do Estado burguês. Conforme esse processo foi se aprofundando, mesmo com as conquistas sociais, mas por meio da inclusão através do consumo, a classe média dos grandes centros passou a se sentir sufocada tanto pelos impostos quanto pela má qualidade dos serviços públicos -- que lhe empurrava mais e mais para os gastos privados. E se a classe média não é e jamais será um espaço dado a características muito progressistas e revolucionárias, cabe ao menos neutralizar caráter reacionário que aqui é assaz patente. O PT preferiu estigmatizá-la, a chamá-la de coxinha, acusá-la de elitista e outras coisas mais (não que não seja verdade em alguns casos), mas não procurou entender esse fenômeno, suas motivações. Deu de presente essa gente para a oposição que, de 2010 pra cá, anda mais raivosa e radicalizada. E a oposição fez o serviço sujo mancomunada com a grande mídia. O resultado foi a gestação de feroz antipetismo que se apresentou como força política em 2014 capaz de ameaçar o petismo.

O futuro

Eu teria muito para escrever, mas este texto já se faz bastante extenso. De pronto é possível dizer que o PT, mesmo vindo a ganhar outras eleições, vai sofrer impactos profundos e se verá cada vez mais datado no tempo e no espaço. Ultrapassado mesmo. Algumas legendas, como o PSOL, talvez tentem revivê-lo vendendo-se como um petismo puro, sem desvios. Contudo, como vimos, não se chega ao Estado-burguês, que não é democrático, sem fazer pacto com o diabo. E não será por meio de pleitos viciados, garantidos pelo poder financeiro e midiático, que o PSOL e qualquer uma de suas boas figuras chegará à presidência. Algumas outras tendências identitaristas podem eventualmente tentar ocupar a lacuna, mas não devem passar de ações com alguma influência na classe média. E no meio de tudo isso, é claro, um forte discurso conservador a tentar colar em toda a esquerda as mazelas do petismo agora derrotado e surrado em praça pública.

Mas não é um momento para desespero. Ainda que a direita venha com tudo, e virá, a esquerda revolucionária que entrou em 2013 nas ruas fragilizada e marginalizada, quando o pacto da Nova República começou a ser quebrado, agora se encontra bastante mais forte e mais consciente de que, no Estado burguês, não há nada para reformar, apenas derrubá-lo. Várias alegorias vazias que sustentavam o pacto de legitimidade do Estado burguês brasileiro foram ao chão. E ao vivo para todo o país ver. E isso não é ruim, claro. Por mais doloroso que seja um acontecimento, é importante saber como são as coisas e como elas funcionam. Mesmo que para isso tenhamos de passar por um talvez rigoroso inverno, mas com a esperança e certeza de que a primavera uma hora chegará.

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