10/06/2015

O Brasil está mais conservador?

Uma das questões que marcaram e continuam em pauta no debate público no Brasil no período antes, durante e depois do pleito presidencial é o recrudescimento político de agendas conservadoras. Há quem entenda isso como o retrato de um país mais conservador, reacionário. E nisso há um terrível equívoco, pois ignora tanto a História bem como a crise que se abate sobre a economia e as instituições burguesas.




O Brasil tem uma formatação tanto cultural quanto política bastante conservadora. Calcado no catolicismo, no escravismo institucionalizado durante quatro séculos e em um Estado de gestão autocrática na maior parte do tempo, o brasileiro -- essa figura tão múltipla e diversa -- tem no seu caráter conservador um aspecto de semelhança. Algo que de algum modo representa inclusive uma identificação nacional - expressa por meio da religião, da reafirmação cristã.

No entanto, pelo menos durante o período da Nova República, que vai da redemocratização burgo-liberal de 1985 até os dias atuais, a conformação das instituições políticas bem como o conteúdo da nova Constituição, calcado nas de países de capitalismo central e menos conservadores, consubstanciado com fatores sociais como o flagelo social deixado pela autocracia burgo-militar, que fez a classe média ainda católica abraçar o discurso de justiça social das esquerdas democrático-burguesas, permitiu que medidas progressistas (não confundir com o partido do Maluf) fossem tomadas, a recolocar novamente o Brasil próximo àquilo que se tinha alcançado tanto na Europa como nos EUA.

Este fato bem como o histórico distanciamento do Estado da população, permitiu que o diálogo fosse intermediado por grupos organizados, como centrais sindicais, organizações de estudantes e outros surgidos a partir da luta contra a autocracia burgo-militar, ou seja, agregações que tinham matiz claramente de esquerda. A direita por sua vez encontrava-se um tanto que desmoralizada e sem pauta, uma vez que a experiência da autocracia burgo-militar foi a pior possível e o capitalismo outra vez se tornava hegemônico com a crise e posteriormente queda da União Soviética. Isto fez com que inclusive partidos claramente de direita, como o PFL, negassem a alcunha de direitistas.

Foi nesse contexto que a luta político-partidária e institucional se deu. Contudo é bastante equivocado acreditar que as conquistas, a maior parte em forma simbólica, isto é, de leis e não concretamente no quotidiano, tenha modificado o caráter conservador do brasileiro. Ainda que tenha havido alguma mudança na percepção em relação ao racismo, à homossexualidade, transexualidade e outras formas de ser-estar no mundo, essas questões sempre esbarraram em uma visão anti-radical da população, isto é, que nega a raiz do problema ou mesmo ações para atenuá-las. O caso das cotas raciais é um exemplo clássico: quase ninguém nega o racismo, mas ninguém se identifica como racista e boa parte renega quem tenta combatê-lo de modo propositivo, isto é, que ousa tentar mexer nas engrenagens sociais. Mesmo que minimamente, o caso das cotas.

Do Orkut ao Facebook

A sub-representação da esmagadora maioria no Estado e na forma de se relacionar com ele (aqui um ótimo texto do Léo Sakamoto sobre a composição do Congresso atual) vem a ser reduzida, mesmo que paulatinamente, com o processo de inclusão proporcionado pelos governos petistas na sociedade do consumo. Essa sociedade consumista é a síntese do modo de vida de classe média. E o projeto político do lulismo sempre foi pensado nessa perspectiva. E foi alcançado em parte com a política de expansão do consumo (facilitação do crédito etc.) sem muita preocupação com as melhorias de serviços públicos essenciais (Ver André Singer Os Sentidos do Lulismo), o que não ajudou a melhorar o debate embora ampliasse o número de vozes.

Esta política proporcionou um ascenso social e a composição de uma nova classe média, que se não vive materialmente em condições próximas à tradicional, tem um modo de pensar e de aspirações bastante semelhantes. E é nesse caldo que ressurge a direita organizada e capaz de levar milhões às ruas como não o fazia desde o período pré-golpe de 64.

E a articulação política desses movimentos deu-se quase que majoritariamente na internet, com ideólogos que acumulam várias divergências, mas uma similaridade: o anti-esquerdismo e, em sua fase pontual, o anti-petismo (aqui um bom retrato desse processo pelo Rogério Castro ainda que com uma linguagem meio governista).

E a internet entra como um aspecto fundamental nesse processo por sua horizontalidade e algo que eu chamaria de "cultura do anonimato'', o que permite que as mais terríveis absurdidades sejam proferidas sem que se responsabilize os autores. E sendo o conservadorismo e sobretudo o reacionarismo anti-humanista, ignorante (porque não compreende nem mesmo a dinâmica capitalista, de mudança das relações humanas) e conflitante com o Estado de direito, a internet passou a ser não apenas terrenos fértil, como a melhor forma de chegar nos grupos mais carentes de formação educacional e neles disseminar uma ideologia que conforma muito bem o senso-comum reinante no Brasil.

E são exatamente nos setores médios, entre analfabetos políticos e oportunistas, que essas idéias vão ganhar peso concreto e se tornarão ações políticas.

Classe média mais conservadora?
Quando se fala em Brasil mais conservador, acredito que há um erro no sujeito da análise do estudo. Como explicitei no intróito deste pequeno texto (ou textículo, como diria um amigo), a formação no Brasil é conservadora. Mas existiam algumas nuances que embaraçavam o processo: uma delas, o tipo de cristianismo que existia entre nós, católico, preocupado com a desigualdade social, a pobreza e essas mazelas comuns a todas as sociedades capitalistas. Aqui lembremos que embora a ICAR tenha se inserido na sociedade do capital, o seu corpo dogmático ainda remonta às instituições medievais, donde a mercantilização da vida é vista como um ataque aos desígnios divinos. Em A Bolsa e a Vida de Jascques Le Goff fica bastante claro a condenação veemente dos clérigos em relação a uma das bases capitalistas que é o empréstimo a juros, a usura, e a própria organização mercantil.

A predominância católica no Brasil e na classe média, onde o discurso politizado da Igreja era mais proeminente, permitiu que nos anos 70, 80 e até meados da década de 90 houvesse uma aceitação por parte desse setor de pautas de inclusão.

Esse fato foi a se modificar claramente com o PT no poder. Com o partido que até ali simbolizava a luta pela justiça social no poder, com o enfraquecimento do discurso da igreja, as debilidades do pacto conservador petista, isentando da burguesia os impostos que seriam cobrados dos mais pobres e da classe média, fez gerar de pronto uma insatisfação que foi conduzida sobretudo depois do escândalo do mensalão pela imprensa burguesa (que até ali, pelos bons índices da economia e pelo receituário do Palocci, havia levantado a bandeira branca);

Essa insatisfação também é de caráter simbólico: com a classe média a crescer em taxas menores que a burguesia e a classe trabalhadora, embora a melhorar de vida, ela passa a se ver mais próxima dos setores outrora muito marginalizados do que daqueles que um dia ela vislumbrava ser. A democratização dos espaços de consumo, espaço onde a classe média se reafirmava enquanto ser social e identitário - já que não produz e nem faz parte da burguesia --, passa a gerar estranhamento típico de sociedades quase estamentais que passam a viver algum processo de mobilidade social.

A esse processo de distanciamento dos setores médios da burguesia e de maior acesso ao consumo, algo próprio ao estágio do capitalismo atual, culpou-se o PT e sua política, entendida equivocadamente como algo socialista quando, em verdade, é totalmente alinhada com o capitalismo, a burguesia transnacional e suas políticas econômicas ortodoxas.

No entanto, para se transformar em mobilização política, seria preciso atingir uma massa mais volumosa, que é a nova classe média, que mais religiosa e em grande parcela alinhada com religiões evangélicas neopentecostais, muito conservadoras e assentadas na moral capitalista, não tinham no bolso o principal motivo pra reclamação. E é baseada na pauta de costumes moralistas como também no discurso do medo com a crescente violência -- outro sintoma endêmico de sociedades capitalistas consumistas e muito desiguais -- que esses grupos são arregimentados para o discurso político conservador.

Crise capitalista e de suas instituições

Para a combustão só necessitava de um último ingrediente: uma crise econômica. Esse fato que já começava a ser observável com as baixas taxas de crescimento em 2013, 2014 fez com que esses grupos tenham em massa votado contra o Partido dos Trabalhadores no pleito presidencial, aumentando substancialmente uma bancada crítica à direita - ainda que por vez da base governista -- da gestão de Dilma Rousseff.

As marchas de Abril e Maio em São Paulo e algumas outras capitais, nesse processo, acabam que por ser apenas um ato contínuo do que se verificou ano passado e que os novos capítulos estarão subordinados às vicissitudes da economia, mas que a oposição tucana tenderá arrastar até 2018 e, logrando a presidência, acredito eu que porá fim a essa união perversa desse blocão conservador que hoje se une pelo anti-petismo.

Mas os estragos até lá, sobretudo em relação às minorias e direitos trabalhistas, não serão dos menores.

(PS: em relação às ações sistematizadas da direita, há um thatcherismo que é disseminado por grupos como o Instituto Millenium e o PSDB e seus aliados canalizam em suas políticas, no entanto ainda não é algo com adesão massiva. A rejeição à PEC 4330 parece ser um bom indicativo disso tal qual a reação negativa ao modo truculento que a PM do PSDB tratou professores no Paraná).

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