10/06/2015

Carne morta-viva.

Crônica de Ellen Valadares*

Bêbado. Moribundo. Saiu de dentre os paralelepípedos. Pés rastejantes indispostos, virou a esquina cambaleando. O primeiro tapa do dia foi do vento. Ardido, seco, frio. Sol subindo sem esquentar.   Expirando fumaça sem tragar. É o frio. Arrepiando de dentro da farinha do osso até o couro da sua carne. Carne morta-viva.

Carne que bem podia ser só viva. Ou só morta. Lamuriava desatinado. Conformante. O mundo já está funcionando. Indiferente, barulhento. Gente pra-lá-pra-cá. Seguiu seu rastejo trépido. Ramando surdamente como cerca viva no muro. Cerca morta. Mudo, devagueando por entre lápides de rua. Entoando estalos com seus dedos magricelos, corudos, muxibentos, sem dar conta. Costume. Quando o que amortece evapora e só sobra homem são no lombo, é que vem o tombo. Tombar nessas horas é aliviante. A calçada estava quentinha, dez horas! Ah! Ficou esquentando a carne morta-viva no macio do concreto. Humm... Poeira preta de asfalto. Areia de calçada quebrada penetrando os poros. Aroma puro de esgoto estourado subindo bem ali em frente. Péssimo lugar pra tombar hoje. Olhos de homens suinamente corpulentos atravessam o quarto estendido na calçada. Não apetece. Nem desapetece. É como deve ser. Natural do mundo. Ora! Lipídeos lumiosos balançantes, panças apertando o volante, e ossos esfarinhando na calçada. Assim, como lua e sol. Composição. Que diga? Quem estabeleceu esse critério? Fosse por mero acaso, descabido, porém não se trata de seleção natural. Foi aceito. Acatado. Inviolável. Porque os ossos são o lastro do corpo. O lastro do moço é o lastro desse mundo. Não é necessário, sei bem.

Meio dia. Sóbrio. Aquecido. Levantou. Certas temperaturas fazem o sangue correr bem. Conexões estabelecidas. Engrena o sistema. Mas há um buraco fundo que aperreia pra além do corpo. O que se faz pra além do estômago. Tripas vazias. Homem vazio. Vivo-morto-vivo. Viva! Dê jeito, que viva! Segue lá pra onde mantém esse lócume indeciso vaguente de mortidão ou vivência. Sim, pensou por vezes não completar o ciclo que o mantinha nessa condição, mas o oco do pipoco da tripa vazia virando do avesso, berra é por fora. Soca, esteia no inferno, urra estridente, ensurdece, cega, estremece e faz andar, e faz desistir da especulação. Segue o trapo da tripa, a farofa do osso, a carne morta-viva pra fila. Nascente de saliva jorrando. Afogando a língua. Inundando em goladas as amígdalas. Babeja. Macarrão com corante. Feijão bem temperado. Fios de espaguete se embolando entre os dentes, preenchendo gengivas, engrossando a saliva rala. Escorrendo até o estômago, dissolvendo subitamente com ligeireza os primeiros triturados. Se apruma. Carne viva! Viva! Agora vai viver, alucinado! Vai viver alucinando.

E assim o fez. Tentou a seco. Foi caminhando, assobiando um bolero, fingindo com esmero que seguia pra casa, sorrindo, olhando pro céu, o mesmo céu que é seu inferno em noites friorentas, chuvosas e penedas. Pés descalços e bem dispostos, caminhando com aprumo, admirando a paisagem. Parou no parque, cheio de gente pra-lá-pra-cá bastava ir aproximando sua cena que qualquer gente fazia rapidamente pra-lá-pra-lá. Continuou fingindo, assobiando, aprumando, mas fedia. Fedia... E então, como tantas outras vezes, sua carne alucinada viva jazia. Jazia... E volta a caminhar moribundo, morto-vivo. Lembrou do pai que não teve. Do barraco tombando pela encosta. De sua mãe morta na sala. De Madalena vizinha preocupada. Lembrou da carreira quando menino, fugindo de apanhar no desabrigo. Ganhando na pedância ou no natal. Lembrou da juventude abafada no forno fazendo carvão, dessa parte com orgulho. Fazia fornos. De adobe. Caprichosos demais. Bem arrematados nos detalhes, os furos milimetricamente calculados compondo uma estética harmoniosa. De nada valia para o carvoeiro dono, mas fazia com gosto. Transformar o barro era do que gostava. Foram duas décadas trocadas por bóia e cama, respirando bafo quente de carvão. Quando tira tudo, dias e dias depois é quente. Não se respira lá dentro. Cortava pau no cerrado, tomava pinga de noite, transava com Mariazinha e ansiava o dia de fazer um forno novo. Lembrando distraído se pegou a ter raiva. De que vale?

É hora de apertar pra realidade, fazer pedido na praça. Café, baralho, prata, cigarro ou cachaça. Dezesseis horas, sol frio, nem um dedo de prosa. Ninguém fala com os mortos. Ainda se fosse uma legítima alma penada, quem sabe? Mas carne morta ambulante, fedorenta? Não. Seus olhos denunciavam queixa: Secos, tristes, remelentos, esfarinhados, sôfregos, ressequidos, vazios, cheios de falta. Anoitecendo, espinha fria. Prata na mão, cachaça no copo. Alucina. Mais uma. Hora do baile no viaduto. O seleto clube já está aceso, em baixo buzina, faróis, tédio, trânsito sem transitar. Em cima nocturno, luzes de discoteca, coisa fina. Viaduto livre. Devagueando depressa de um lado para outro, agora sim: morto-morto. Recitando palavras sentidas, palavras sem sentido pra quem está vivo. – Pobre Louco! Noite corrente. Frio cortante. Cabeça latejante. Carne com pus, agora cheirava! Pés cascudos, bailando cascalhos, lixando o asfalto, fazendo ranhuras na madeira do banco da praça. E dança com outros mortos, se sente vivo como nunca! E agora, ah! E agora tem dó mim, que pensava estar viva. Mas o viver mesmo, se vive é assim, “morto-morto”, só com o corpo.

* Ellen Valadares é escritora.

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