24/07/2015

A moça da pedagogia

 Caminhava. Não sabia aonde ir. Então me permitia continuar a caminhar. O que procuro? Não sabia, mas já o tinha encontrado: seus olhos. E estavam ali, tão próximos... E eu poderia fitá-los durante horas. Mas foram apenas segundos. Segundos que desgraçadamente marcariam toda uma vida. Porque a primeira vez.

Era, tinha que ser. Afirmava pra mim mesmo em forma de cobrança e esperança, porque já se passaram muitas primaveras. Tinha chegado a hora. Tinha de chegar.

Voltei ao mesmo lugar, busquei os mesmos olhos e não os encontrei de imediato. Havia de ser uma quimera? Enquanto eu me inquiria, se verdade ou ilusão, lá a moça aparecera, novamente, de súbito, com simpatia e beleza, tudo em profusão. E eram lindos seus olhos. E como.

Dali em diante, com a precisão e a urgência dos enamorados, no mesmo horário e lugar, eu sempre lá estava pronto para vê-la. Eu passei a existir para isso: vê-la, enxergá-la. Mas a dor das dúvidas eram imensas. Como poderia ser ela a primeira sendo que desde logo me parecera ser tão única?

Não demorou muito e eu comecei a ser percebido. Não era mais a relação de um admirador de arte diante de uma obra telúrica inigualável. Era eu, Modigliani, sendo observado pelo quadro que eu ajudei a pintar, colorir e que idealizei em existência. E caramba: existia!

E me doía. E me angustiava. Eram dúvidas, era o sentimento de não saber o que fazer, do caminho do desconhecido, do medo, da sensação de impotência. Era, sobretudo, a compreensão de que eu não estava à altura.

Que miserável é ser pequeno diante da grandiosidade!

Naquele mesmo espaço, com as mesmas questões e dilemas, mas com as certezas e convicções que só quem um dia conheceu a paixão pode asseverar, lá estava eu, vendo o quadro que também me enxergava. Mas havia uma aliança. Havia sim. No anular da mão direita. Que porra isso significava?

Pode ser compromisso, pode ser noivado. Não importava: havia outra pessoa. E quem era, cacete? Não importava mais uma vez: havia alguém. Como diria a famosa cantora em belos versos, meu mundo caiu. E o pior: não tinha ninguém pra levantá-lo senão eu. E no final é sempre isso, mesmo.

Estava porém a deixa pra eu sair e fingir que nada daquilo havia acontecido, alocar toda a imensidão de desejos e dúvidas novamente debaixo do tapete e seguir. E tentar seguir. Mas não. Não dava mais. O caminho já tinha sido tomado. E eu tinha de ir à luta.

E eu tinha de ir à luta. Tinha?

Mas que donzela era aquela, afinal, cuja simples presença fazia meu coração disparar em batidas? Era preciso saber. Era incrivelmente mais rico e diverso do que eu poderia imaginar.

E como proceder? Como vou saber se não perguntar? Mas eu conseguiria? Fiz o que me levou até ela, pois: caminhei. Fui em sua direção enquanto ela também caminhava. Caminhávamos. Entrou na sala da pedagogia. Pronto. Eu já sabia. E não poderia ser diferente, claro: era a moça da pedagogia. E que moça!

Era perfeito. Tudo. Só eu que não. E cada vez que eu tentava me fazer notar e nada acontecia eu tinha ainda mais certeza dessa assertiva. E doía como teria de doer. A vida também é dolorosa e na dor há beleza e poesia.

O tempo passava inexoravelmente. Algo eu teria de fazer ou aquela dádiva viraria apenas inspiração para sentimentos que irremediavelmente se transmutavam em textos pueris, como este que agora escrevo. E não! Não podia ser só isso. Tinha de ser mais. Haveria de ser, claro.

E se não há espaço, é preciso criá-lo. Passei pelo mesmo lugar de sempre e lá estava ela, formosa e exuberante. E uma vez mais me notou. E correspondeu aos meus olhares. Mas já havia feito isso anteriormente e nada mudou.

Chega, disse pra mim mesmo. É preciso dar o passo necessário. É preciso agir. Mas como, se ela sempre foge? Era preciso agir. Era só isso que eu sabia que tinha de fazer.

E agi: a esperei na saída e entrei no mesmo ônibus em que entrou. Estava sentada em um banco sem ninguém ao lado. Era a hora. Ou era apenas loucura? Não dava mais pra voltar. Sentei-me ao seu lado e disse "oi". Fiquei nervoso, angustiado. Não era nossa primeira conversa, mas eu sabia que poderia ser a última. E conforme ela demorou a responder, mais dúvida isso me gerava. E com mais medo eu ficava.

Quando o ônibus deu partida não demorou pra vir o que eu mais temia. Fria como uma geladeira em dia quente de primavera foi e perguntou: peraí, o que você faz aqui? E sem me permitir responder, possivelmente com uma desculpa boba qualquer, soltou a oração cruel e temida, que embora esperada, me caiu como uma bomba: "olha, eu jamais ficaria contigo: você não faz meu tipo".

Você não faz meu tipo.

Você não faz meu tipo.

E eu desci no ponto seguinte.

Não havia mais o que fazer. Estava acabado, encerrado, sepultado. Mas quem? Eu. E doía. Doía como teria de doer.


Por que aquilo me aconteceu? Por que eu não desisti assim que vi a maldita aliança? Por quê? E perguntas sempre apareciam nos intervalos da enorme melancolia que eu sentia e que era, no final das contas, a única coisa ali que me acolhia. Porque doía. Doía muito. E doía mesmo porque teria de doer.

Mas foi na aflição que percebi que aquilo havia sido o capítulo final de uma história, e que embora ainda muito me fizesse sofrer a moça da pedagogia, havia sido sim a primeira vez, como no intróito de tudo eu queria. A primeira vez em que eu amei. E a primeira vez que eu sofri por amor.

E doeu por algum tempo, mas depois de algum tempo não doeu mais. Porque assim teria de ser. E foi.

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