22/07/2015

Breve comentário sobre relacionamentos livres.

Lautrec de1889: burguês boêmio nunca espantou a ninguém
 Comecei o dia de hoje com duas leituras muito agradáveis a partir do ótimo blogue Versoando a respeito de relacionamentos livres. São esses posts aqui (Sobre aquela coisa disfarçada de amor livre e sobre ciúmes e a posição da mulher na luta não-monogâmica) e sugiro ao leitor que os leia na ordem, pois assim respeitará a cronologia das postagens, já que o segundo vem quase que em complemento ao primeiro, mas sem deixar de acrescentar novas posições e críticas -- algumas das quais, claro, com quem eu não concordo e tentarei citar esses pontos ao decorrer deste texto.

A priori, há uma constatação óbvia a ser feita : as relações-livres não estão livres de problemas. Alguns entraves e dilemas inclusive que levam algumas pessoas a tentarem se afastar de relações monogâmicas estão muito bem pautadas pela blogueira Júlia Vita como parte das dinâmicas dessas relações. E compreender isso, embora pareça algo óbvio, como já dito, é de fundamental importância. Peremptório porque vivemos numa sociedade que suas regras morais são pautadas pela propriedade privada, donde o casamento, as relações afetivas e todo o resto não escapam, mas pelo contrário, se agarram e se tornam um complemento dessa visão de mundo.

Quem passou pelo ambiente universitário e teve um amigo extremamente revolucionário ou questionador das coisas e que, anos depois, após casar, se transformou em um retrógrado, reacionário ou alguém no mínimo apassivado diante das coisas?

A lógica do casamento não é algo dissociado do modo como nos relacionamentos com o mundo, as nossas relações de produção e o modo de produção em si. Uma das obras clássicas de Friedrich Engels é "A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado". E repara o leitor mais atento que a formação do conceito de família antecede à propriedade privada e conforme esta noção se torna hegemônica, é defendida e regulada por um aparelho estatal, ganha novas formulações e novos entendimentos até chegar o que é hoje.

Engels detalha por exemplo o modo de organização familiar sindiásmico, onde a mulher já tinha em muito sua liberdade sexual tolhida enquanto ao homem era dado a prerrogativa de se relacionar com outras mulheres, seja de modo escuso ou oficial por meio da poligamia, e a transição para o modo atual, o monogâmico. Enquanto naquele havia alguma equidade na relação mulher-homem na constituição do que se entendia por família, na nova forma de relação, monogâmica, o homem é o centro absoluto enquanto a mulher se torna sua mera propriedade: em Roma Antiga a esposa passa a ser tida ser como um patrimônio de um homem tal qual um cavalo, casas, latifúndios, mobílias etc.

Essa construção, que pauta da Antiguidade até os dias de hoje as relações afetivas, ganhou novos contornos, mas não foi erradicada e sequer modificada em sua substância. As novas facetas, inclusão de novos conceitos, não eliminaram a lógica geral, que continua a ser a mesma. A esposa de um aristocrata romano, por exemplo, tinha uma posição diferente da mulher que é casada com um homem em um Estado burguês hodierno. Um aristocrata era entendido como um ser melhor e sua riqueza, numa sociedade estamental, é algo perene. Numa sociedade calcada no liberalismo, ideologia burguesa, a lógica de uma sociedade estratificada por imposição legal é abolida. E assim como uma propriedade pode mudar de mãos, um homem rico ficar pobre e o pobre ficar rico (pelo menos teoricamente), a mulher vai poder se divorciar, ter novos parceiros, enfim, ser colocada à disposição de novas possibilidades -- e não que tais avanços tenham ocorrido naturalmente, mas fruto de muita luta de movimentos de contestação à ordem.  Só que ela vai continuar sendo uma propriedade.

E mais: a questão não é apenas contestar a ordem, é como a entendemos, como a criticamos e o que em seu lugar nós propomos. As novas formas de compreensão de família, passados dois séculos das revoluções burguesas e embora tenham se modificado, reafirmam peremptoriamente a parceira como propriedade privada. E cada vez menos se tem debatido este ponto, por incrível que possa parecer e para o susto dos desavisados que acreditam que a História é, por fim, a superação e sempre o progresso. Há sim os retrocessos e alguns progressos não tão progressistas. Basta observar que há uma grande inquietude até de teóricos vulgares de relacionamentos e programas de entretenimento na televisão pra encontrar "a mulher" e o "homem" em uma relação homossexual, porque para essas pessoas qualquer forma de organização humana não poderia intransigir à lógica "inquestionável" do capitalismo, a propriedade privada e os papéis sociais do que manda e do que obedece.

E aí chegamos ao ponto fulcral deste texto, que é como o entendimento de amor livre, relacionamentos abertos etc., em desenvolvimento em sociedades capitalistas no Ocidente, não parte na maioria das vezes de uma noção questionadora dos laços "propriedade privada e relações amorosas", mas que, como as monogâmicas, se tornam uma extensão e um complemento do conceito. Não questionam o bojo, mas tentam apenas aparar suas arestas -- recriando apenas novas formas postiças de relação -- e por isso emulam miseravelmente os mesmos dilemas e problemas já que a essência é a mesma.

Aliás, a própria pontuação do "amor livre" nos anos 2000 bebe muito na herança do movimento modista de classe média que se veio a conhecer como yuppies: jovens de classe média, totalmente focados no trabalho e que, aos finais de semana, em lugares previamente dispostos para tais finalidades, vão em busca de entretenimento e de relações, sempre efêmeras, não raro encerradas ali mesmo depois de concluídas. O yuppie é um modelo vivo de sociedades calcadas na lógica do capitalismo neoliberal, onde tudo é propriedade, produto e pode ser comercializado. 

De algum modo, em algum momento, parte dessas pessoas ou as que vieram depois e beberam da herança começaram a criticar a interferência e a coerção social e estatal quanto à sua forma de viver. E um ponto muito importante: não é uma crítica que é necessariamente de esquerda nos dias atuais. A direita defensora do Estado mínimo tem muitos autores que versam sobre. E o conceito de amor-livre, de relacionamentos abertos e várias formas de relações que se distanciam pelo menos formalmente das tradições da instituição da família monogâmica passaram a ser defendidas. Só que o limite da crítica é esse, não vai adiante, não atinge a base da organização societária capitalista.

O problema do ciúme, conforme citado no texto da Júlia Vita, é uma decorrência disso, já que em muito é pautado pela idéia de que nosso parceiro ou parceira nos pertence. Concepção de propriedade privada. É claro que não apenas isso define a existência do ciúme, um fenômeno complexo, porém é uma base central para sua compreensão. Outra é a insegurança. E essa em grande parte é fomentada pela padronização das formas de vida própria das sociedades capitalistas, de como os humanos devem ser fisicamente e tudo o mais. A busca por esse ideal, por se enquadrar em um padrão definido e muito restrito, a transformar relações em papéis sociais (o pai de família; a dona de casa) e isso tudo em sociedades cada vez mais individualistas, que negam o social e partem sempre do pressuposto de que o "eu"' é a régua de tudo, geram uma série de entraves emocionais que inviabilizam uma relação saudável entre duas pessoas - seja ela monogâmica, aberta ou livre, de amizade ou amorosa.

E uma vez mais chegamos ao paradoxo que é o problema existencial de toda a esquerda não-comunista: como humanizar o mundo sem ter que acabar com o capitalismo? E cada vez mais as respostas que estão sendo dadas é que não há como fazê-lo. Os limites de uma sociedade capitalista são e serão sempre estes, embora mude de formas, abra maiores leques de possibilidades em virtude da luta da classe trabalhadora. Afinal, algo deve mudar para continuar tudo como está. Pelo menos as aparências.

Romper com isso e avançar significa quebrar as amarras com a ordem capitalista. E para romper com a ordem capitalista é necessário pontuar claramente o que é e não é um pensamento burguês ou pequeno-burguês. Não entender a centralidade da organização do trabalho na vida das pessoas, como essas formas são reproduzidas no dia a dia, na vida íntima e pública, é não romper com a ordem capitalista. Tentar ver o mundo por gradações de gênero e se limitar a elas, do homem-branco-hétero-cis até chegar na mulher-negra-lésbica-trans*, é ver o mundo de uma forma pequena-burguesa: mulheres negras ricas, famosas, não sofrem e nunca sofrerão da mesma forma de exploração que pessoas pobres, sejam brancas, amarelas ou negras. O genocídio perpetrado contra negros nas periferias é patrocinado por uma classe média branca, mas é efetuado por uma polícia cada vez mais negra e é legitimado por uma voz conservadora ressoando meios de comunicação dentro dessas próprias periferias.

E a questão é bem simples: o cerne de toda exploração, preconceito, discriminação é a idéia de que o outro não é um igual, não é portador dos mesmos direitos e deveres. E quando você tem uma sociedade dividida em classes, por mais que as pessoas digam o contrário, elas nunca se verão como iguais porque nem são educadas para tal e nem as condições materiais apontam para isso.

É por isso que as lutas segmentadas que a pós-modernidade tanto evoca, seja o ateísmo pela sociedade laica, seja o feminismo não-classista pelos direitos das mulheres, o movimento LGBT-não classista ou as pautas de relações afetivas não-monogâmicas sempre vão esbarrar nos limites do capitalismo. E seus projetos de liberdade, extremamente importantes, ficarão sempre limitados a uma série de normativas sistêmicas: como por exemplo quem vai usufruir ou não dos parcos avanços conquistados, geralmente restritos à burguesia e, quando muito, à classe média.

Não é esse o mundo que queremos, pois. Os avanços precisam ser estendidos a todos. E precisam ser conquistados por inteiro.


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