Galvão Bueno é e sempre será o grande nome da narração esportiva no
Brasil. E talvez para alguns essa pareça uma afirmação precipitada,
tanto por outros que trabalharam ou ainda trabalham na área quanto por
aqueles que estão por vir. Mas não tenho medo de prognosticá-la.
Por
mais que apareçam outros nomes, por mais que se discuta a qualidade de
outros narradores, nenhum deles falou com "poder de vida e morte" a
respeito de um assunto como Galvão Bueno -- logicamente usando a tevê
Globo, que nos anos 80, 90 e começo dos 2000 detinha um monopólio que
talvez nenhuma emissora em qualquer parte do mundo tenha tido. E como a
televisão está em pleno declínio, é muito difícil que algo assim, de uma
mesma pessoa falando pra tanta gente, volte a acontecer.
Acabei
ontem de ler o livro que ele chama de auto-biográfico, "Fala, Galvão".
Ainda que sim, seja uma biografia, é mais um livro de causos e opiniões
do narrador do que um exemplar detido em contar sua carreira
pormenorizadamente. Isso fica evidente desde o começo, com o prefácio do
Ronaldo Nazário, com um tom extremamente informal e bajulador, e a
introdução.
É um bom livro para quem não conhece Galvão mais a
fundo. Eu nunca o vi pessoalmente, mas boa parte das histórias contadas
eu já conhecia, seja por ele as ter apresentado na televisão, em
entrevistas, seja pela boca de outras pessoas que cobriam a F1 e futebol
na época e que eram amigas ou muito próximas ao jornalista.
O
mais interessante, porém, é o que ele não diz. Toda a publicação é
calcada em bajulação e de críticas e comentários enviesados (como quando
ele afirma que Massa, de quem é muito amigo, deveria ir à justiça pelo
campeonato perdido em 2008; que Senna foi um herói; ou que Parreira e
Felipão foram uma boa coisa pra seleção em 2013, algo que é modificado
nas páginas escritas depois do 7 a 1, mas tirando a dos dois da reta e
colocando a de Marin -- uma figura fácil de bater nos dias de hoje). Mas
fica implícito algumas das maiores qualidades e defeitos de Galvão.
A
maior sacada de Galvão foi entender para que público falava e do que
falava. Sempre foi um estudioso das modalidades, gostava de acompanhar
todas desde a adolescência, uma cultura esportiva muito rica e sempre
gostou de falar. Um falastrão, como eu, que na escola no Ensino
Fundamental ganhei o carinhoso apelido de Galvão.
Galvão muitas
vezes falava mais com o coração sobre os acontecimentos esportivos do
que com a razão, uma personificação um tanto interessante do homem
cordial do Sérgio Buarque. E sempre teve um tempo muito bom na colocação
de frases, algumas de efeito. Naquela época, no seu esplendor, final
dos anos 90, o "Ronaldinho" arrastando o r; o "Sai que é sua Taffarel" e
alguns outros bordões marcaram bastante. E marcavam porque sabia
usá-los. Alguns outros narradores da atualidade parecem ter esquecido do
quão importante é ser natural. Ficar a falar "Que beleza!" ou "Não, não
é assim!" a cada 10, 15 minutos, é forçar a barra.
Já Galvão
Bueno, apesar de falar demais, sempre foi muito técnico na narração dos
fatos em si. Saía do ponto quando começava a tentar comentar as partidas
e as corridas. Mas na narração do fato, no Brasil pelo menos, nunca
houve alguém com maior precisão nas pontuações que davam sentido ao
enredo.
E aí é que está: Galvão talvez tenha sido o primeiro
jornalista esportivo que tenha sacado (ainda que ele nunca vá admitir
isso, o que explico depois) que o brasileiro não gosta tanto de esporte.
Gosta de festas, histórias -- e histórias novelescas, que a Globo se
especializou em contar e que é, na prática do entretenimento, ou era no
século XX, o programa predileto dos brasileiros. Pronto: era o herói, o
vilão; o nós, o eles; o Senna do Brasil, o Prost não-sei-do-quê; o como é
gostoso ganhar da Argentina.
Galvão soube sacar isso, colocou na
mesa o seu coração de torcedor apaixonado, certo grau de didatismo,
somou as técnicas que foi a desenvolver pra reduzir um pouco a
importância da sua voz, que ele considerava ser seu ponto fraco (uma
bobagem!), e pronto: teve uma subida meteórica. Em 90 já era o narrador
número 1 da Globo em uma Copa do Mundo. 6 anos depois de começar a
narrar, em 74, ele já estava na Globo.
Nos últimos anos,
especialmente a partir da Copa de 2002, o narrador apaixonado, polêmico,
morreu um pouco. Ainda que tenha ganhado maturidade, não tenha tentado
brigar com a imagem como o fazia com certa frequência no passado, aquele
misto de empolgação, ufanismo, torcida e tudo o mais davam um caldo
muito marcante. O Galvão Bueno dos anos 2010 já não é sombra do narrador
que foi um dia. Ainda que a meu ver tenha feito a melhor e mais
marcante narração no 7 a 1, com o "lá vem eles de novo" e o "virou
passeio", em uma precisão cirúrgica na colocação e no momento típicas do
Galvão, as suas narrações hoje são arrastadas, os enredos por ele
criados já não fazem muito sentido e os erros são muitos: seja do nome
de jogador, pilotos bem como resultados, entendimento de estratégias etc. Nos jogos que transmite da
Liga dos Campeões o resultado é ainda mais desastroso: narra como se
falasse pra quem nunca tivesse ouvido falar dos clubes europeus --
orientação da Globo, mas que ele cumpre muito mal.
Já os pontos
negativos também são muitos. Alguns são claros e gritantes. Como a
tentativa de brigar com a imagem, algo que foi a se reduzir nos últimos
anos, mas que sempre foi uma de suas marcas e gerou enorme antipatia. Só
que os piores problemas de Galvão são menos em relação à narração em
si, e mais à forma como encara tudo: como porta voz político da Globo,
da família Marinho.
Costumo dizer que a nossa forma de avaliar as
pessoas, a misturar vida íntima com a pública, não é das mais corretas.
Mas até por não ser um jornalista de formação acadêmica, como a maioria
de sua época, diga-se, o narrador brasileiro nunca tomou esse cuidado.
Era amigo de Senna fora das pistas e com o microfone na mão também -- e
ajudou a criar a áurea de herói, mito. Sempre foi amigo de jogadores,
técnicos e nunca teve constrangimento algum de conviver com uma série de
personagens pra lá de controversos (pra dizer o mínimo), como Marin,
Ricardo Teixeira e outros.
E com essas relações todas, que
misturam sua profissão e alguns de seus muitos negócios, há sempre uma
fala pública completamente alinhada com o que deseja a Rede Globo. Os
discursos durante a Copa das Confederações, em 2013, de que os
torcedores estavam "contra a corrupção" e não contra a seleção (as
pautas das Jornadas de Junho iam muito além disso); a tentativa de
encobrir os fracassos dos brasileiros em esportes individuais -- uma
política da casa, e que o narrador sempre levou ao cúmulo do absurdo -- e
a crítica a personagens que não são bem vistos pela Família Marinho
(que se sente dona da seleção brasileira) no futebol, como Dunga, que
cortou privilégios na cobertura realizada pela emissora carioca, são
fatos notórios na carreira de Galvão.
Quando Galvão fala e
escreve -- como é nesse livro, com a ajuda do ex-jornalista da Nike e
agora do Sportv Ingo Ostrovsky, sempre dá pra perceber que há uma
tentativa de alinhamento com o que a cúpula da Rede Globo quer e deseja.
O discurso de que o brasileiro ama o futebol, a seleção, essas ladainhas todas que a Globo vende, tão todas lá.
Outros jornalistas esportivos da casa nunca seguiram esse
caminho. Nunca se deixaram ser voz oficial da família Marinho. Talvez
até por isso a vaga de Bueno como narrador número 1 da casa esteja ainda
muito tempo garantida embora a qualidade tenha caído muito -- o que é
natural, afinal o homem já tem quase 70 anos.
Só que o Carlos Eduardo dos Santos Galvão Bueno,
essa pessoa a quem cresci ouvir falando e que em muito tem a ver com o
fascínio que ainda hoje me causa ver e analisar a imprensa esportiva --
às vezes até mais que o esporte em si -- poderia ter um fim de carreira
melhor e se posicionar de forma mais digna. O narrador é daqueles que
chama patrão de colega e que, repito, permeia sem constrangimento
ambientes que colocam em dúvida a ética de um jornalista (não confundir
com imparcialidade, algo que não existe). Galvão é mais do que a voz
mais importante do esporte no Brasil. É a voz da família Marinho,
detentora de um império. E como tal, por diversas vezes, buscou fazer
dos enredos que criava pra entreter seus espectadores um espaço oficial
do discurso dos donos da emissora.
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