23/07/2015

Carlos Eduardo dos Santos Galvão Bueno

Galvão Bueno é e sempre será o grande nome da narração esportiva no Brasil. E talvez para alguns essa pareça uma afirmação precipitada, tanto por outros que trabalharam ou ainda trabalham na área quanto por aqueles que estão por vir. Mas não tenho medo de prognosticá-la.

Por mais que apareçam outros nomes, por mais que se discuta a qualidade de outros narradores, nenhum deles falou com "poder de vida e morte" a respeito de um assunto como Galvão Bueno -- logicamente usando a tevê Globo, que nos anos 80, 90 e começo dos 2000 detinha um monopólio que talvez nenhuma emissora em qualquer parte do mundo tenha tido. E como a televisão está em pleno declínio, é muito difícil que algo assim, de uma mesma pessoa falando pra tanta gente, volte a acontecer.

Acabei ontem de ler o livro que ele chama de auto-biográfico, "Fala, Galvão". Ainda que sim, seja uma biografia, é mais um livro de causos e opiniões do narrador do que um exemplar detido em contar sua carreira pormenorizadamente. Isso fica evidente desde o começo, com o prefácio do Ronaldo Nazário, com um tom extremamente informal e bajulador, e a introdução.

É um bom livro para quem não conhece Galvão mais a fundo. Eu nunca o vi pessoalmente, mas boa parte das histórias contadas eu já conhecia, seja por ele as ter apresentado na televisão, em entrevistas, seja pela boca de outras pessoas que cobriam a F1 e futebol na época e que eram amigas ou muito próximas ao jornalista.

O mais interessante, porém, é o que ele não diz. Toda a publicação é calcada em bajulação e de críticas e comentários enviesados (como quando ele afirma que Massa, de quem é muito amigo, deveria ir à justiça pelo campeonato perdido em 2008; que Senna foi um herói; ou que Parreira e Felipão foram uma boa coisa pra seleção em 2013, algo que é modificado nas páginas escritas depois do 7 a 1, mas tirando a dos dois da reta e colocando a de Marin -- uma figura fácil de bater nos dias de hoje). Mas fica implícito algumas das maiores qualidades e defeitos de Galvão.

A maior sacada de Galvão foi entender para que público falava e do que falava. Sempre foi um estudioso das modalidades, gostava de acompanhar todas desde a adolescência, uma cultura esportiva muito rica e sempre gostou de falar. Um falastrão, como eu, que na escola no Ensino Fundamental ganhei o carinhoso apelido de Galvão.

Galvão muitas vezes falava mais com o coração sobre os acontecimentos esportivos do que com a razão, uma personificação um tanto interessante do homem cordial do Sérgio Buarque. E sempre teve um tempo muito bom na colocação de frases, algumas de efeito. Naquela época, no seu esplendor, final dos anos 90, o "Ronaldinho" arrastando o r; o "Sai que é sua Taffarel" e alguns outros bordões marcaram bastante. E marcavam porque sabia usá-los. Alguns outros narradores da atualidade parecem ter esquecido do quão importante é ser natural. Ficar a falar "Que beleza!" ou "Não, não é assim!" a cada 10, 15 minutos, é forçar a barra.

Já Galvão Bueno, apesar de falar demais, sempre foi muito técnico na narração dos fatos em si. Saía do ponto quando começava a tentar comentar as partidas e as corridas. Mas na narração do fato, no Brasil pelo menos, nunca houve alguém com maior precisão nas pontuações que davam sentido ao enredo.

E aí é que está: Galvão talvez tenha sido o primeiro jornalista esportivo que tenha sacado (ainda que ele nunca vá admitir isso, o que explico depois) que o brasileiro não gosta tanto de esporte. Gosta de festas, histórias -- e histórias novelescas, que a Globo se especializou em contar e que é, na prática do entretenimento, ou era no século XX, o programa predileto dos brasileiros. Pronto: era o herói, o vilão; o nós, o eles; o Senna do Brasil, o Prost não-sei-do-quê; o como é gostoso ganhar da Argentina.

Galvão soube sacar isso, colocou na mesa o seu coração de torcedor apaixonado, certo grau de didatismo, somou as técnicas que foi a desenvolver pra reduzir um pouco a importância da sua voz, que ele considerava ser seu ponto fraco (uma bobagem!), e pronto: teve uma subida meteórica. Em 90 já era o narrador número 1 da Globo em uma Copa do Mundo. 6 anos depois de começar a narrar, em 74, ele já estava na Globo.

Nos últimos anos, especialmente a partir da Copa de 2002, o narrador apaixonado, polêmico, morreu um pouco. Ainda que tenha ganhado maturidade, não tenha tentado brigar com a imagem como o fazia com certa frequência no passado, aquele misto de empolgação, ufanismo, torcida e tudo o mais davam um caldo muito marcante. O Galvão Bueno dos anos 2010 já não é sombra do narrador que foi um dia. Ainda que a meu ver tenha feito a melhor e mais marcante narração no 7 a 1, com o "lá vem eles de novo" e o "virou passeio", em uma precisão cirúrgica na colocação e no momento típicas do Galvão, as suas narrações hoje são arrastadas, os enredos por ele criados já não fazem muito sentido e os erros são muitos: seja do nome de jogador, pilotos bem como resultados, entendimento de estratégias etc. Nos jogos que transmite da Liga dos Campeões o resultado é ainda mais desastroso: narra como se falasse pra quem nunca tivesse ouvido falar dos clubes europeus -- orientação da Globo, mas que ele cumpre muito mal.

Já os pontos negativos também são muitos. Alguns são claros e gritantes. Como a tentativa de brigar com a imagem, algo que foi a se reduzir nos últimos anos, mas que sempre foi uma de suas marcas e gerou enorme antipatia. Só que os piores problemas de Galvão são menos em relação à narração em si, e mais à forma como encara tudo: como porta voz político da Globo, da família Marinho.

Costumo dizer que a nossa forma de avaliar as pessoas, a misturar vida íntima com a pública, não é das mais corretas. Mas até por não ser um jornalista de formação acadêmica, como a maioria de sua época, diga-se, o narrador brasileiro nunca tomou esse cuidado. Era amigo de Senna fora das pistas e com o microfone na mão também -- e ajudou a criar a áurea de herói, mito. Sempre foi amigo de jogadores, técnicos e nunca teve constrangimento algum de conviver com uma série de personagens pra lá de controversos (pra dizer o mínimo), como Marin, Ricardo Teixeira e outros.

E com essas relações todas, que misturam sua profissão e alguns de seus muitos negócios, há sempre uma fala pública completamente alinhada com o que deseja a Rede Globo. Os discursos durante a Copa das Confederações, em 2013, de que os torcedores estavam "contra a corrupção" e não contra a seleção (as pautas das Jornadas de Junho iam muito além disso); a tentativa de encobrir os fracassos dos brasileiros em esportes individuais -- uma política da casa, e que o narrador sempre levou ao cúmulo do absurdo -- e a crítica a personagens que não são bem vistos pela Família Marinho (que se sente dona da seleção brasileira)  no futebol, como Dunga, que cortou privilégios na cobertura realizada pela emissora carioca, são fatos notórios na carreira de Galvão.

Quando Galvão fala e escreve -- como é nesse livro, com a ajuda do ex-jornalista da Nike e agora do Sportv Ingo Ostrovsky, sempre dá pra perceber que há uma tentativa de alinhamento com o que a cúpula da Rede Globo quer e deseja. O discurso de que o brasileiro ama o futebol, a seleção, essas ladainhas todas que a Globo vende, tão todas lá.

Outros jornalistas esportivos da casa nunca seguiram esse caminho. Nunca se deixaram ser voz oficial da família Marinho. Talvez até por isso a vaga de Bueno como narrador número 1 da casa esteja ainda muito tempo garantida embora a qualidade tenha caído muito -- o que é natural, afinal o homem já tem quase 70 anos.

Só que o Carlos Eduardo dos Santos Galvão Bueno, essa pessoa a quem cresci ouvir falando e que em muito tem a ver com o fascínio que ainda hoje me causa ver e analisar a imprensa esportiva -- às vezes até mais que o esporte em si -- poderia ter um fim de carreira melhor e se posicionar de forma mais digna. O narrador é daqueles que chama patrão de colega e que, repito, permeia sem constrangimento ambientes que colocam em dúvida a ética de um jornalista (não confundir com imparcialidade, algo que não existe). Galvão é mais do que a voz mais importante do esporte no Brasil. É a voz da família Marinho, detentora de um império. E como tal, por diversas vezes, buscou fazer dos enredos que criava pra entreter seus espectadores um espaço oficial do discurso dos donos da emissora.

Nenhum comentário: