16/01/2017

Sobre questão dos presídios - Por Aline Passos

As revistas Veja, Istoé e Época desta semana dedicaram suas capas aos recentes acontecimentos nas prisões localizadas no norte do país. Existe uma série de questões que podem ser debatidas a partir das matérias, mas por enquanto vou me limitar às que me parecem mais complicadas, seja pelo caráter consensual à esquerda e à direita, seja pela circularidade histórica dos argumentos que faz a positividade da prisão emergir sempre da constatação de seu fracasso.

Em primeiro lugar, aparece a chamada omissão do Estado. Atribui-se a dimensão atual do controle das facções a uma espécie de ausência estatal, precisamente, onde não faz qualquer sentido falar em falta de Estado. Não existe lugar onde o Estado seja mais Estado do que numa prisão. Tanto podemos retomar os fundamentos do contratualismo, quanto a tese weberiana do monopólio do exercício legítimo da violência para debater o problema, mas muito mais eficaz me parece ser o lembrete de que ninguém vai parar numa prisão se não por obra e graça do poder estatal.

Mesmo quando se trata de administração privada de unidade carcerária (voltarei a este ponto em outro post), o controle sobre como, quando, e de que forma se pune é, para lembrar Godwin, a questão fundamental da ciência política, assim como a prisão, por sua vez, tornou-se a forma elementar de punição na modernidade, segundo Foucault. Em ambos os casos, se tem algo que está implicado no debate é a presença inequívoca do Estado. Punir e prender talvez sejam as formas mais essenciais de um Estado Moderno se realizar enquanto tal. Atribuo, aliás, à ignorância de jornalistas, juristas e, pasmem, historiadores, a referência constante ao caráter medieval ou selvagem (sabe-se lá porque alternados como sinônimos) da situação nos presídios brasileiros. A prisão, tal como a conhecemos, é um produto da modernidade, da civilização e do humanismo. Creditar o que lá acontece a qualquer outra forma histórico-política é somente uma forma de afastar de nós mesmos as atrocidades que produzimos, segundo a crença que nos convém.

Os problemas que vão da tal superlotação à corrupção, passando por outras questões de gerenciamento, já não podem ser admitidos como ausência. Trata-se de uma política afirmativa que se define como governamentalização do Estado, ou seja, um arranjo polìtico específico das maneiras pelas quais se produz governo sobre a vida e a morte da população encarcerada, e cujo aspecto menos importante é definir-se pela ação ou omissão em termos gramaticais ou jurídicos, posto que ambas consistem em um fazer, um funcionamento, um modo de se mover estrategicamente.

Em outras palavras, o Estado não é omisso ou fraco quando deixa o governo das prisões ser exercido por grupos que trabalham no campo dos ilegalismos. É exatamente para que estes desonerem as instituições de um fazer que não pode ser anunciado ou defendido enquanto tal pelos devotos do Estado Democrático de Direito - sempre dispostos a afirmar a legitimidade da prisão e propor projetos mirabolantes para reformá-la - que esta delegação acontece.
Em São Paulo, há muito se sabe que o governo das prisões se dá pelo compartilhamento de gestão entre a SAP-SP e o PCC, o que implica dizer que a alternância de poderes entre eles permite que só tenhamos notícias dos horrores perpetrados no sistema prisional quando algum acordo se rompe e anuncia uma nova reacomodação de forças. E é precismente por isso que você e eu dormimos tranquilos todas as noites, sem sermos assombrados por cabeças decapitadas. Alguns de nós, inclusive, pedem novas formas de criminalização, enquanto se mostram comovidos ou indignados com a “barbárie”, que não é nada mais que o fio desencapado das nossas Luzes.

Quando a impresa informa que a empresa administradora do Compaj, em Manaus, notificou o governo do estado sobre a possível ocorrência de rebelião, é preciso entender a comunicação entre os gestores como de fato ela opera: não uma mera troca de ofìcios e pedido de reforço policial, cuja ausência de resposta foi a causa do massacre (vamos lembrar que no Carandiru foi exatamente o contrário...), mas um “cumpra-se” para o extermínio que formalidade nenhuma consegue esconder. Para quê se desgastar quando é possível fazer o serviço que se pretende sem sujar as fardas ou as mãos? Percebam que, depois, não faltou quem dissesse que entre os mortos não havia santo...

Dito isto, vamos ao que mais interessa: os massacres nas prisões, de tempos em tempos, emergem como uma das formas de controle da superlotação e remanejamento de novos contingentes de encarcerados para inauguração de unidades prisionais que já surgem sob as mesmas condições de possibilidade que anunciam a próxima tragédia. Tragédia, aliás, que irá chocar as sensibilidades humanistas menos habituadas a se olharem no espelho. E é por isso que eu começo a escrever o que, provavelmente, será uma série de longos posts, sugerindo um tantinho de honestidade neste debate: não são a tortura e a chacina que nos chocam, é a exposição de suas imagens que atrapalha nosso café da manhã.

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